Opinião
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12 de junho de 2022
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17:24

O silêncio sepulcral do Ministério da Agricultura e a necropolítica da fome (por Paulo Niederle)

"A fome voltou": Lambe lambe em muro na Avenida Paulista, em São Paulo. Foto: Roberto Parizotti/Fotos Públicas

Paulo Niederle (*)

Na última semana o tema da fome ocupou um espaço relevante na agenda pública. A divulgação, pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN), do II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (II VIGISAN), escancarou nossa triste realidade: 15,5% da população, ou seja, 33 milhões de pessoas, está passando fome no Brasil (um montante equivalente a três vezes a população de Portugal!). Se ampliamos o foco para aqueles que não tem acesso regular a alimentação adequada, chegamos a 125,2 milhões de pessoas (a população total do Japão) em situação de insegurança alimentar. 

As causas desse desastre são variadas. Não há dúvidas de que a pandemia tem sua parcela de culpa no agravamento do problema. A crise geopolítica decorrente da invasão russa à Ucrânia também tem revelado impactos importantes nos preços internacionais. No entanto, pesquisas realizadas antes da pandemia também já apontavam para o avanço da fome e da pobreza como resultado do desmonte que o atual governo promoveu das políticas de apoio à agricultura familiar e de segurança alimentar e nutricional. 

Apesar da crise instaurada, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) atua como se o problema não lhe dissesse respeito. Alguém assistiu alguma coletiva de imprensa da ministro Marcos Montes Cordeiro para tratar do tema? Leu algum documento esboçando um plano de ação contra a fome? 

Há várias razões para essa omissão. Uma dela diz respeito ao próprio fato de que a área de abastecimento foi uma das mais fortemente desmontadas pelo governo. Reproduzindo a ladainha liberal à exaustão, o governo zerou os estoques públicos de alimentos, se tornou incapaz de regular os preços e criou uma armadilha para sua própria sobrevivência.

Insistindo no erro, uma das poucas (e ineficazes) medidas anunciadas para tentar conter a inflação foi a redução de 10% das alíquotas do imposto de importação de certos produtos alimentícios, incluindo itens como feijão, carne, massas, biscoitos e arroz. Além de não resolver o problema, esse tipo de medida apenas dificulta ainda mais a precária situação da agricultura familiar e, no longo prazo, agrava a crise.

Nas reuniões internacionais, onde não conseguem desviar do tema, os representantes do MAPA têm falado em superar a fome por meio da liberalização dos mercados, aumento da produção e expansão do crédito agrícola. No entanto, os dados recentes sugerem que a ampliação das exportações e do PIB do agronegócio brasileiro, que bateram recordes durante a pandemia, não repercutiram na redução da fome (podem, na verdade, ter acentuado o problema).

Já no contexto interno, o MAPA faz de conta que sua única atribuição é a manutenção do pujante agro brasileiro, deixando o tema da fome para a “área social”.

Infelizmente isso não é novidade. Antecessores de Marcos Montes Cordeiro já tiveram o mesmo comportamento. E, de fato, a agenda da segurança alimentar e nutricional ganhou mais espaço em outros ministérios, os quais construíram importantes políticas públicas, à exemplo do Programa de Aquisição de Alimentos, renomeado e desmontado pelo atual governo.

Se quem tem fome tem pressa, é urgente que a sociedade brasileira exija a presença do MAPA nesse debate, até porque as suas políticas de incentivo irrestrito às commodities de exportação são parte do problema. 

A segurança alimentar e nutricional é uma agenda que demanda investimentos de várias áreas (diz-se intersetorial no meio político e interdisciplinar no acadêmico). Por razões óbvias, o ministério que trata da agricultura e que, em tese, ainda é responsável pela (falta de) política de abastecimento, deveria ser um participante ativo dessa discussão. 

Mas não há tempo nem esperança de que o atual ministério altere sua necropolítica – sim, porque, como bem define Achille Mbembe, trata-se precisamente do poder de definir quem pode viver e quem deve morrer, e, como mostram os dados, o flagelo da fome atinge principalmente os pobres, as mulheres, e os(as) negros(as) (Vigisan, 2022). São essas pessoas que a omissão está matando cotidianamente. Se fossem homens brancos e ricos não faltariam recursos, políticas e coletivas de imprensa. 

A questão agora é outra: qual será o papel desse ministério no futuro? A sociedade brasileira continuará permitindo que ele se exima das suas responsabilidades? Que ele tenha um mandato para tratar exclusivamente dos interesses do agronegócio exportador? Ou esse ministério vai ser lembrado de que ele é responsável pelo abastecimento e que, na sua estrutura ainda existe algo chamado Companhia Brasileira de Abastecimento (Conab)? E, para além do abastecimento, ele será instado a discutir seriamente o tema da alimentação e a construir políticas alimentares? 

(*) Professor da Universidade Federal do Rio Grande Sul (UFRGS)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 


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