Opinião
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27 de junho de 2022
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14:56

O adeus aos palcos (por Helio Barcelos)

Milton Nascimento (Divulgação)
Milton Nascimento (Divulgação)

Helio Barcelos (*)

Se a música não rejuvenesce, ao menos ela faz o tempo andar devagar. Que o digam os compositores que nasceram em 1942. Às vésperas de fazer 80 anos, Milton Nascimento começa a sua despedida dos palcos. Pulamos a parte em que ele confessa a sua paixão por Elis Regina, dizendo que “todas as músicas que compunha, eram para ela”, enquanto ela dizia que “se Deus cantasse, teria a voz de Milton Nascimento”.

Os 80 de Milton coincidem com os de Caetano, Ney Matogrosso, Paulinho da Viola, Roberto Carlos (81), Erasmo, Chico quase lá, Gilberto Gil e outros da geração de 1942, a mesma de Paul McCartney, Bob Dylan, Rolling Stones e quase todos os Beatles. A safra de 1942, porém, pouco tem a ver com o ano, a não ser que era na Segunda Guerra e é um equívoco achar que 1968 e 69 não têm nada a ver com as mudanças do mundo e a formação de artistas não só da música, mas em quase todas as áreas.

Os nascidos em 42 chegaram em 68 (“um ano que ainda não acabou”, segundo alguns) com apenas 26, 27 anos (… que idade incrível para se mudar o mundo) e a contracultura seria o pano de fundo para acontecimentos como a Guerra do Vietnam, as Barricadas de Paris, o auge dos Beatles, Conquista da lua, Fellini, a Revolução Sexual, a invenção da pílula, a Primavera de Praga, o Festival de Woodstock, as lutas pelos direitos nos EUA com Martin Luther King à frente…

No Brasil, a instituição do AI 5, a censura, os exilados, os festivais de música, protestos, a Bossa Nova criando musculatura , a Tropicália, a Jovem Guarda, Cinema Novo… , e na América do Sul a morte de Che Guevara, e golpes diversos, tudo de uma só vez.

Quem viveu essa época, não ficou imune às mudanças, que funcionou como um portal ou um túnel que as pessoas, ao passar por ele, jamais seriam as mesmas… É próprio de a arte, recusar o fácil e o que é cômodo, antes preferindo o movimento, a casa desarrumada, as mudanças e protestos (A arte reproduz a sua época).

Milton passou por tal processo ganhando um festival com a música “Travessia”, título emblemático com o que estamos falando. Suas composições cantam os trabalhadores nas salinas em “Canção do sal”, a morte e a saudade em “Sentinela”, “Paixão e fé”, a religiosidade, “São Vicente”, “Coração de estudante” (“é preciso cuidar do broto, pra que a vida nos dê flores”), “Ponta de Areia” sobre os estragos do progresso nas linhas de trem. “Conversa de bar”, “Maria, Maria” e “Cio da terra”… , todas perfeitas musical e poeticamente e a fazer inveja à cultura `de qualquer país.

Ao cantar Minas (o mais brasileiro dos estados) e seus mistérios, Milton canta o Brasil do sincretismo entre os ritos africanos e católicos em acordes dissonantes e tonalidades menores raros e mágicos. Dos engenhos de açúcar, à Inconfidência Mineira, Aleijadinho, Chica da Silva, as Folias de Rei, Congada, até o Clube da Esquina (1972), o melhor disco da música brasileira, tudo é Minas. E ainda têm Drummond e Guimarães Rosa… Vida longa aos artistas que tornam a nossa vida melhor.

(*) Professor, Mestre em Literatura e pesquisador da MPB. Coordenador do Grupo de Samba Batuque na Cozinha de Santa Rosa

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21

 


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