Opinião
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22 de junho de 2022
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18:37

As estatais na mira dos mercados (por André Moreira Cunha)

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

André Moreira Cunha (*)

“… the revival of private wealth is partly due to the privatization of national wealth.” ― Thomas Piketty, Capital in the Twenty-First Century

Ao Redor do Mundo as Estatais São Revalorizadas ….

Uma das características marcantes do século XX foi a atuação crescente e mais diversa dos Estados Nacionais na indução do desenvolvimento. Antes da eclosão da Primeira Guerra Mundial, e em tempos de paz, os gastos públicos não chegavam a 10% das respectivas rendas nacionais nos países centrais. O gasto social (educação, saúde, previdência etc.) mal atingia 1% da renda. Com exceção de determinadas obras de infraestrutura, usualmente contratadas pelos governos e executadas por empresas privadas, a interferência do poder público na esfera econômica se concentrava mais em aspectos legais, regulatórios e securitários. Estes foram essenciais para a emergência das modernas economias de mercado. 

A partir dos anos 1920 e, mais intensamente, depois dos anos 1950, a ação estatal ampliou-se e diversificou-se como resposta às necessidades de crescimento das economias urbanas e industriais. A insuficiência dos investimentos privados em infraestrutura moderna e em setores industriais estratégicos e a necessidade política de enfrentar a instabilidade social por meio da ampliação da inclusão das camadas não proprietárias fizeram com que os Estados Nacionais passassem a prover bens e serviços diretamente.

No plano produtivo, áreas como transporte, comunicações, energia, finanças, produção de insumos industriais (siderurgia, química etc.) e outros passaram a contar com a presença de empresas produtivas controladas pelos governos, as estatais. Da mesma forma, os governos passaram a predominar na provisão de serviços como educação, saúde, seguridade social, lazer, esportes e habitação. Por decorrência, o gasto público passou de 10% do PIB para mais de 30%, na média das economias de alta renda, chegando a mais de 40% em alguns casos

Para financiar este novo perfil de atuação, a tributação também cresceu e passou a incidir mais sobre o patrimônio e a renda dos setores proprietários. A partir dos anos 1970, a elites nacionais dos países de alta passaram a reagir ao maior controle dos Estados sobre a renda e, em particular, sobre os segmentos econômicos potencialmente lucrativos. Para proteger sua posição patrimonial e política, haveria de se reduzir os espaços de poder criados pelo ciclo prévio de democratização. Para isso, as capacidades estatais foram redirecionadas para favorecer os ricos e reduzir o poder social dos segmentos não proprietários. Por meio dos processos de desmonte dos sindicatos e de reformas trabalhistas redutoras de direitos, da ampliação da liberalização comercial e financeira, interna e externa, e das privatizações, recriou-se o ambiente institucional de predomínio das elites experimentado antes da Primeira Guerra Mundial.  

Nos últimos quinze anos, as sucessivas crises experimentadas no plano internacional, particularmente a crise financeira global (2007-2009), a pandemia da Covid 19 e a guerra na Europa, tornaram ainda mais evidentes os limites econômicos e sociais criados pelas políticas neoliberais. A transferência para o setor privado de atividades essenciais para garantir a reprodução estável da vida social revelou-se como fonte permanente de geração de insegurança social e de ampliação nas desigualdades. Colocou-se em xeque a própria capacidade privada de garantir a oferta de serviços e de bens estratégicos para o bom funcionamento das economias de mercado contemporâneas.

Portanto, é outro o debate internacional dos anos 2000 sobre atuação direta do Estado (governos centrais e locais) como provedor de bens e serviços. Disseminou-se a insatisfação com os resultados da globalização econômica e das reformas estruturais pró-mercado, ambas estratégias derivadas da agenda neoliberal. Em 2020, a edição de abril do Monitor Fiscal do Fundo Monetário Internacional (capítulo 3) trouxe evidências sobre o papel das estatais nas economias de alta renda e nas emergentes e em desenvolvimento. Constatou-se que o seu peso relativo dobrou na economia internacional no período pós-crise financeira global (2007-2009, CFG). Antes dela, aquelas organizações respondiam por algo entre 5% e 10% dos ativos das 2 mil maiores empresas do mundo. Em 2018, tal indicador chegou a 20%. Em valores correntes, são US$ 45 trilhões em ativos, montante que corresponde à metade do PIB global. Em termos de participação nas dívidas e nas receitas das maiores empresa, passou-se de uma média de 4% (2000-2002), em ambas as dimensões, para 14% e 16%, respectivamente, em 2016-2020.

Há milhares de empresas controladas, total ou parcialmente, por governos centrais ou locais, atuando nos mais diversos setores da economia, particularmente na provisão de infraestrutura (água, saneamento, energia, telecomunicações, transportes etc.) e serviços (financeiros, educacionais, de saúde etc.).  Pelas estimativas do FMI, 55% dos investimentos em infraestrutura nos países emergentes e em desenvolvimento (PEEDs) são realizados por estatais. Ademais, a participação de tais empresas na capitalização dos mercados acionários oscila entre 13% e 22% nos PEEDs. Nas economias maduras, conforme sugere o ganhador do Prêmio Nobel em Economia, Joseph Stiglitz, os Estados também deveriam liderar o novo ciclo de investimentos em infraestrutura.

Bancos públicos respondem por parcelas importantes do crédito ofertado em muitas economias, tanto as de alta renda, como a Alemanha (1/3 do estoque de empréstimos), quanto os de renda baixa e média. Em 2016, a média era de 20%. Dentre as economias avançadas, algumas possuíam indicadores acima deste parâmetro, quais sejam: Alemanha, Holanda, Portugal, Coreia e Suíça. Nos BRICS tal média era de 40%. Os últimos levantamentos do Banco Mundial e do FMI revelam que  os banco públicos foram essenciais para garantir a retomada do crédito depois da CFG. Sua atuação contracíclica contrastou com o comportamento mais conservador dos bancos privados, os quais originaram aquela crise e foram resgatados com vasto apoio dos bancos centrais. Outro setor que merece destaque é o de petróleo e gás, onde as estatais controlam mais de metade das reservas e da produção global.

Nem todas as estatais são integralmente controladas pelos governos. O FMI identificou que 60% das maiores empresas multinacionais consideradas nesta categoria apresentam participação governamental minoritária. Tomando-se esta perspectiva, duas regiões se destacam em termos do número de estatais: Europa e Ásia Pacífico, ambas com mais de quinhentas grandes empresas cujas participações acionárias governamentais variam entre 20% e 100%. As estatais das demais regiões (Oriente Médio e Ásia Central, África Subsaariana, América Latina e América do Norte) quando somadas atingem 1/3 das 1,5 mil empresas que constam na base de dados da Unctad.  Em termos individuais são destaques as estatais da China, dos países da União Europeia, da Índia, da Malásia, da Rússia, da África do Sul e dos Emirados Árabes Unidos [1]

O Banco Mundial reconheceu a importância estratégica das estatais no enfrentamento da pandemia, tanto ao absorver os múltiplos choques negativos (sanitário, econômico e social), “… produzindo ventiladores, máscaras e até vacinas da Covid-19”, quanto ao garantir uma recuperação mais rápida e robusta. Assim, tais entes governamentais desempenharam “… um papel crítico, trazendo alívio à população, mantendo (as sociedades) resilientes aos choques, apoiando economias em dificuldades e proporcionando empregos.”

Assim, os problemas de eficiência e de captura das estatais por interesses políticos ou corporativos não deveriam obscurecer a sua importância estratégica. Justificar privatizações sob a alegação de que o setor privado é sempre mais eficiente e de que seus prejuízos se restringem aos acionistas implica em ignorar que os governos e, portanto, os recursos dos contribuintes, são recorrentemente utilizados para socorrer empresas privadas também geridas de forma inadequada. Somente no caso das instituições atingidas pela crise subprime nos EUA os gastos públicos de “salvamento” do setor privado foram de US$ 498 bilhões em termos líquidos (ou 3,5% do PIB de 2009). Se estes mesmos recursos tivessem sido transferidos para as 9 milhões de famílias que então viviam abaixo da linha de pobreza (média dos anos 2009 e 2010), cada cheque teria o valor de US$ 55 mil. 

... no Brasil Estão na Mira dos Mercados.

A transferência do controle acionário da Eletrobras para investidores privados foi a privatização mais destacada do ciclo político inaugurado com o impeachment da presidente Dilma Rousseff. O governo federal e lideranças no Congresso Nacional já alçam mira para encaminhar a venda da Petrobras. A partir de 2016, por meio âmbito do Programa de Parcerias de Investimentos – PPI (Lei nº 13.334) e da atuação da Secretaria Especial de Desestatização do Ministério da Economia, a estratégia de transferência do patrimônio público para o setor privado voltou a ganhar centralidade. 

Em uma perspectiva história, pode-se sugerir que o movimento de privatizações representa o desmonte do projeto nacional-desenvolvimentista. Este termo, sempre polêmico na literatura, está associado a um período de elevado crescimento e de intensa modernização na estrutura produtiva, entre os anos 1930 e 1980. Os sucessivos governos brasileiros, a despeito de diferenças institucionais e políticas relevantes, estabeleceram como prioridade o desenvolvimento socioeconômico nacional por meio da industrialização. Emulavam, assim, as estratégias e os instrumentos utilizados em outros países, particularmente os de alta renda.

Depois da crise da dívida externa nos anos 1980 e em sintonia com as tendências internacionais, o Estado brasileiro adotou a estratégia de privatizar suas empresas. Entre 1990 e 2005 foram 99 desestatizações de estatais sob o controle do governo federal brasileiro nos setores siderúrgico, químico e petroquímico, fertilizantes, elétrico, ferroviário, mineração, portuário, aeroportuário, rodoviário, financeiro, de petróleo e outros. Estas ocorreram através da venda integral das empresas, venda parcial de ações, concessões e arrendamentos, o que implicou em um montante arrecadado de US$ 64 bilhões em valores correntes. Os governos locais (estadual e municipal) também realizaram operações de transferências de ativos para o setor privado, em US$ 35 bilhões. Com o impulso gerado pelo PPI foram realizadas 150 operações de desestatização entre 2019 e 2022, dentre as quais a que envolveu a capitalização da Eletrobras, a qual implicou perda do controle majoritário por parte do Estado brasileiro. Foram concedidos R$ 190 bilhões (ou US$ 40 bilhões) nos últimos quatro anos.

Até recentemente o setor de energia ainda era considerado estratégico por parcela majoritária do establishment, o que limitou a ação privada nas suas maiores empresas, particularmente Eletrobras e Petrobras. Sem energia a sociedade e os mercados são negativamente afetados. Por isso mesmo, a Agência Internacional de Energia (IEA, na sigla em inglês) define a importância de haver “segurança energética”, vale dizer: “… a disponibilidade ininterrupta de fontes de energia a um preço acessível”. Isso implica na importância de se garantir “… investimentos oportunos para fornecer energia de acordo com a evolução econômica e as necessidades ambientais …  (que haja) capacidade de o sistema energético reagir prontamente a mudanças repentinas no equilíbrio entre oferta e demanda.”. 

O Brasil é um ator importante no cenário global de energia. De acordo com os dados do “Panorama Energético Global 2021”, o país foi responsável por produzir 13,1 EJ (exajaule ou 1018 jaules) em 2020, equivalente a 2,2% do total mundial (589,1 EJ). Esta participação poderá aumentar para 2,7% até meados de 2050. A dimensão mais relevante da inserção brasileira está na composição de sua matriz energética. O Brasil responde por 9,6% da oferta global de energias renováveis (6,6 EJ de um total mundial de 68,5 EJ). Até 2050, a IEA projeta que as fontes renováveis atingirão a produção de 192,5 EJ ou 26% da oferta total (744 EJ). Atualmente, esta proporção é de apenas 11%. Mesmo neste novo contexto, em que os demais países deverão investir mais em fontes renováveis, o Brasil teria um peso relativo de 6%, com o dobro da média global em termos de produção per capita de energia a partir de fontes sustentáveis. 

Com a transição energética em curso, o uso de petróleo, gás e seus derivados segue condicionando o comportamento do mercado mundial. Não é à toa que a geopolítica da energia é um tema central para os principais poderes globais. A segurança energética e o uso estratégico dos recursos naturais são elementos que organizam quaisquer estratégias nacionais de desenvolvimento e de poder, especialmente quando estas estão alicerçadas na análise racional do ambiente econômico e político internacional. É amplamente reconhecido, inclusive pela IEA, que setor privado pode até ser importante, mas não tem fôlego suficiente para garantir a necessária conformação de uma estrutura de oferta mais adequada à crescente demanda por energia, por um lado, e à mitigação dos problemas associados ao aquecimento global, por outro. 

Aqui, a Petrobras e as reservas do Pré-sal emergem como fatores-chave, tanto para a autossuficiência em termos de produção de petróleo, quanto para a manutenção do controle nacional de capacidades tecnológicas, industriais e financeiras que permitam o uso mais racional dos recursos naturais do país. Nos próximos anos, um dos desafios mais importantes do Brasil no campo energético está em reduzir sua dependência da importação de combustíveis, cuja produção doméstica é inferior à capacidade de refino. Em 2020, os consumidores brasileiros respondiam por 2,6% da demanda internacional por combustíveis, ao passo que a produção local equivalia a 2,2% da oferta internacional (ver as tabelas A.9 e A.10 do Panorama Energético Global 2021). E isto deverá ser feito em paralelo à adaptação da estrutura produtiva e dos padrões de consumo ao uso de formas menos poluentes de energia. É mais racional reorientar uma empresa como a Petrobras para a nova realidade energética do que construir novas organizações para tal finalidade. 

Para a IEA, a neutralização, até 2050, na emissão de gases que geram aquele fenômeno, demandará elevar para US$ 4 trilhões/ano os investimentos em energias limpas e novos padrões de consumo. É um incremento de mais de 1/3 sobre os níveis atuais, o que implicará no envolvimento de atores privados, movidos pelos incentivos de lucro e agentes estatais. A agência estima que 70% do financiamento requerido virá de fontes privadas, ao passo que as empresas públicas responderiam pelos 30% restantes. E, mesmo para viabilizar as operações financeiras privadas, bancos públicos teriam de ser mobilizados [2]

Eletrobras e Petrobras são as maiores empresas brasileiras no setor de energia, compreendido este em seu sentido mais amplo. A privatização da primeira e o desejo de fazer o mesmo com a segunda indicam que a elite política e econômica está disposta a abdicar de dois instrumentos-chave para garantir a segurança energética e, com isso, garantir alguma autonomia à trajetória de desenvolvimento do país em um momento particularmente complexo da política mundial. São relegadas a um plano secundário as décadas de esforços na construção de tão amplas e complexas capacidades gerenciais, produtivas e tecnológicas. Ao hipotecar seu futuro aos ditames de interesses imediatistas dos mercados, o Brasil se coloca em uma posição hierarquicamente inferior no cenário global.

Notas

[1] Segue a lista das maiores empresas da base da Unctad: China Petrochemical, China National Petroleum, State Grid China, China State Construction Engineering, Volkswagen, Saudi Arabian Oil, China Railway, Deutsche Telekom, China Resources, Eni, PEMEX, Sinochem, Airbus, PTT, China Minmetals, Gazprom, Rosneft Oil, Nippon Telegraph and Telephone, China National Offshore Oil, Peugeot, Enel, Electricité de France, Equinor, Petrobras, China Southern Power Grid, COFCO, ENGIE, Deutsche Post, China Communications Construction, Renault, State Oil Company of the Azerbaijan, China North Industries, China Baowu Steel Group, CITIC, ENGIE, POSCO, COFCO, Petroliam Nasional Berhad, Pertamina, Deutsche Bahn, Orange, JBS, Saudi Basic Industries, Shaanxiyanchang Petroleum Group. 

[2] We estimate that around 70% of clean energy investment will need to be carried out by private developers, consumers and financiers responding to market signals and policies set by governments (Figure 1.11). But an expansion of public sources of finance is also required. Public actors, including state-owned enterprises (SOEs), often have a key part to play in funding network infrastructure and clean energy transitions in emissions-intensive sectors. Public finance institutions will need to catalyse private capital, and their role is especially important in the NZE, where their investment more than doubles compared with the APS.” (IEA, World Energy Outlook 2021, p. 48)

(*) Professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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