Opinião
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30 de maio de 2022
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07:39

Roteiro para ‘Oliveira Silveira: breve fortuna crítico-afetiva’¹ (por Ronald Augusto)

Divulgação
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Ronald Augusto (*)

Os textos aqui reunidos, conforme sugere o título da obra, têm um duplo caráter: de um lado os leitores encontrarão um conjunto de escritos comprometidos com a análise e o estudo mais formais a propósito do legado do poeta; de outro lado, uma sequência de memórias, testemunhos ou depoimentos através dos quais a figura empírica de Oliveira Silveira vem à tona de maneira comovente. Felizmente esses modos de representação ou as duas dimensões de leitura dedicadas ao intelectual e criador negro, ao fim e ao cabo, se conjugam e se complementam permitindo aos interessados a compreensão a respeito do impacto da poesia e do pensamento de Oliveira sobre a experiência vivencial e intelectual desses autores. 

A maioria conheceu o poeta pessoalmente e, inclusive, esteve ao seu lado seja em projetos literários, seja em atividades relacionadas à luta antirracista. Os demais colaboradores de Oliveira Silveira: breve fortuna crítico-afetiva, por motivos diversos, tiveram principalmente contato com os seus poemas e livros, em outros termos, trata-se de uma filia – a afeição, o gosto e mesmo o sentido de reconhecimento de si no encontro com o outro – conquistada por meio do envolvimento amoroso com as palavras; o ego-scriptor de Oliveira Silveira se revela, portanto, a eles e elas da forma mais radical, a saber, pela linguagem. 

Esse acervo de comentários sobre a figura de Oliveira Silveira é criterioso e apaixonado, e se alegra também de ser provisório e parcial, porém, no sentido em que todo e qualquer esforço intelectual pressupõe uma dinâmica colaborativa na qual vislumbramos lacunas e esboços a exigir visadas múltiplas com vistas à construção do conhecimento compreendido como um trabalho em progresso. Por essa razão o uso do qualificativo breve para essa não exaustiva fortuna crítico-afetiva que o leitor e a leitora têm agora diante dos seus olhos. Oliveira Silveira: breve fortuna crítico-afetiva representa uma contribuição que esperamos se mostre importante no esforço de investigação e divulgação dos discursos poéticos e políticos de Oliveira Silveira em sua relação com o pensamento negro contemporâneo. 

Vejamos, então, de forma bem pontual, os caminhos interpretativos trilhados pelos colaboradores e pelas colaboradoras em sua imersão nos transes de linguagem e da vida prática que informam a experiência multifacetada de Oliveira Silveira.

Naiara Rodrigues Silveira Lacerda foi a primeira colaboradora que me veio à mente para compor o painel de narrativas cujo objetivo é esboçar uma figura possível do poeta. Seu efetivo empenho em manter a obra de Oliveira viva entre nós tem sido fundamental para o surgimento de importantes projetos e iniciativas tanto de coletivos negros independentes como de instituições oficiais devotadas a fazer mais larga a recepção à produção intelectual e criativa do poeta. Aqui ela escreve uma comovida carta ao pai comemorando a idade inventiva dos seus oitenta anos que seguem se projetando no presente onde futuros se insinuam perpetuamente.

O poeta e escritor Oswaldo de Camargo, grande responsável pela afirmação e reconhecimento do conceito de literatura negra, espécie de inventor dessa vertente literária, se junta aos colaboradores com um texto que traz a seguinte pergunta ao poeta de Poema sobre Palmares: qual a raiz do homem Oliveira Silveira? Oswaldo atravessa livros e poemas do seu velho companheiro no encalço da reposta. 

Jorge Fróes entra nessa comunidade evocando a figura do poeta e amigo pelas vozes e versos de outros poetas com os quais Oliveira convivia às vezes na forma de um círculo real de amizades, às vezes apenas como o refinado leitor que era. Fróes reconhece a influência do poeta em seu discurso, mas uma influência que ultrapassa os limites do artesanato da escrita, pois a esse respeito ele escreve o seguinte: “Sim, o Oliveira sabia acolher e cuidar”. Uma ética das virtudes aprendida em encontros fraternos e casuais.

Vera Lopes, atriz e ativista negra, retrata Oliveira Silveira em sua dimensão de estudioso e mestre voltado às questões históricas e lutas das populações negras. Ela nos fala, por exemplo, sobre a proposição do dia 20 de novembro como data nacional da consciência negra; a criação do grupo Semba, onde Oliveira mobilizou jovens negros visando o compromisso com as formas e tradições culturais afro-brasileiras. Depoimento crítico e generoso.

Iosvaldyr Carvalho Bittencourt Junior, jornalista e antropólogo, se embrenha no debate conceitual relativo aos problemas e critérios de definição da literatura negra ou afro-brasileira. Sim, o tema era abordado por Oliveira Silveira, e estava em sua área de interesse. Iosvaldyr, portanto, segue os passos do mestre. No entanto, Oliveira parecia mais afeiçoado a estabelecer interações e diálogos com outros escritores negros do que propor uma teoria a respeito dessa produção. O texto de Iosvaldyr é de grande importância.

A professora Sátira Machado escreve a segunda carta endereçada ao poeta. O texto, cheio de referências a amigos e acontecimentos do nosso tempo, vai atualizando o correspondente sobre, entre outras coisas, a criação do Instituto Oliveira Silveira (que abrigará documentos, revistas e inéditos do autor), o esforço de coletivos negros para que poeta receba o título de Doutor Honoris Causa pela UFRGS. Sátira combina a intimidade daqueles que trocam cartas com o relato de eventos e projetos que dizem respeito aos iguais, mas que não deixam de ser do interesse público.

Richard Serraria, cancionista e poeta, descobre a fonte de sua tamboralitura na singularidade afro-gaúcha de Oliveira Silveira. O sopapo e seus toques reinventados ao rés do suingue da cultura pop porto-alegrense se encontram com os tantãs amefricanos do poeta do distrito de Touro-Passo.

O poeta, compositor e letrista, Ricardo Silvestrin descreve em seu texto como se deu a descoberta do percurso poético de Oliveira e de como esse poeta passou a figurar em seu cânone pessoal. Ricardo lembra também do seu envolvimento com a publicação do livro Oliveira Silveira: obra reunida (2012) que o Instituto Estadual do Livro editou durante o período em que Silvestrin foi diretor da instituição; publicar a poesia de Oliveira era um dos projetos que o poeta queria realizar – e realizou – em sua gestão. 

A escritora Lilian Rocha, chama a atenção para um aspecto importante da atuação de Oliveira Silveira junto à comunidade negra de Porto Alegre: o poeta sempre se envolveu com os esforços de permanência e manutenção dos clubes negros da cidade. Os pais de Lilian Rocha já conheciam Oliveira e foi assim que o trabalho cultural e literário dele começou a estimular a produção da escritora.

É interessante notar o momento em que o músico, compositor e ator Álvaro Rosa Costa compreendeu a importância de Oliveira Silveira. Ele conta que estava em São Paulo e aproveitou para visitar o Museu da Língua Portuguesa. Em uma das salas assistiu a uma projeção com poemas de Oliveira. O músico recorda com orgulho e admiração a imagem do poeta naquele vídeo. O surpreendente não foi encontrar Oliveira no Museu, sua presença em tal espaço é justa e necessária, talvez o que causou esse sentimento de surpresa no músico tenha sido a constatação de que dentro das fronteiras regionais o reconhecimento do trabalho de Oliveira, por parte do sistema literário, seja ainda demasiadamente acanhado.

Duan Kissonde, o mais jovem dos colaboradores, discorre sobre o modo como a poesia de Oliveira repercutiu em sua experiência de leitura e, em seguida, o impacto desse evento em sua condição de poeta. O livro que desencadeou esse processo foi Poemas Antologia (2009). Duan escreve que até aquele momento só conhecia um poeta negro, Langston Hughes. Nas palavras do autor de Águas de meninos, deparar com produção de Oliveira foi um “choque”.

A poeta e jornalista Fernanda Bastos também integra o grupo dos colaboradores cujo contato com Oliveira Silveira se materializou através dos livros, no corpo a corpo com a mancha gráfica onde o texto é ser de linguagem. A atividade de jornalista permitiu à poeta o primeiro encontro com a poesia afro-gaúcha de Oliveira e seu pensamento. Uma vida via linguagem.

Escritor, professor e editor, Luiz Maurício Azevedo chegou até Oliveira Silveira pela via do apagamento e da escassez de notas sobre a escrita dos autores negros/negras na dinâmica de diversas tradições e sistemas culturais. Luiz Maurício nos diz que Oliveira o ensinou “…a ver o vazio de nossa cena literária. Estudá-lo é uma forma de honrar seu legado”.

Elisangela Aparecida Lopes Fialho, especialista em Literaturas de Língua Portuguesa, convive com a poesia de Oliveira Silveira desde os tempos em que era estudante de letras e, depois, como professora de literatura, aprofundou ainda mais essa convivência assentada sobre a análise e a fruição estética. Em seu texto podemos confirmar a força dessa motivação através do périplo crítico que a autora faz navegando com segurança por vários livros do poeta.

Convidei o poeta Leo Gonçalves para participar desse livro como a intenção de dar continuidade a um gesto colaborativo ocorrido na ocasião em que eu organizava Oliveira Silveira: obra reunida. Entre os inéditos que compõem o livro decidi incluir um excerto da tradução da parte inicial de Cahier D’Un Retour Au Pays Natal, de Aimé Césaire, que Oliveira Silveira deixara inacabada. No dactiloscrito, o sentido de uma palavra ficou sem solução e não foi vertida para o português, por isso a tradução apresentava uma ou outra lacuna. Recorri ao Leo Gonçalves, pois tinha certeza de que seu domínio do francês seria de enorme valia para vencer o impasse. Rapidamente Leo resolveu a questão. Acrescentei ao livro uma nota reconhecendo meu agradecimento à ajuda prestada. Agora, em seu texto para Oliveira Silveira: breve fortuna crítico-afetiva, Leo Gonçalves analisa as relações entra a poética silveriana e um elenco de poetas das diásporas e da Améfrica imaginada por Lélia Gonzales.

Finalmente, é necessário deixar registrado o enorme empenho da diretora do Instituto Estadual do Livro, Patrícia Langlois, em vista de materializar esse livro e franqueá-lo ao público em geral. Patrícia e a equipe do IEL inscreveram o projeto do livro, que ora se publica, no edital que definiu as propostas a serem financiadas pelo Fundo de Reconstituição de Bens Lesados do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul. Cumpre ressaltar que a proposta de render essa justa homenagem ao legado do poeta Oliveira Silveira representa o primeiro passo dado pelo IEL a apontar para ações subsequentes com o intuito de discutir e valorizar a produção literária de negros e negras através de publicações, pesquisas, bem como de leituras teóricas e performances artísticas. Que esse trabalho alcance os resultados pretendidos.

[1] Texto de apresentação à obra

(*) Ronald Augusto é poeta e ensaísta. Formado em Filosofia pela UFRGS e mestrando em Letras na mesma instituição. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004), No Assoalho Duro (2007), Cair de Costas (2012), Oliveira Silveira: poesia reunida (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013), À Ipásia que o espera (2016), Tornaviagem (2020) e O leitor desobediente (2020).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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