Opinião
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27 de maio de 2022
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14:29

O que fazer com tantos brancos racistas descontrolados em nossas universidades? (por André Klaudat e Flavio Williges)

Pichação racista dentro da UFSM (Foto: Reprodução)
Pichação racista dentro da UFSM (Foto: Reprodução)

André Klaudat e Flavio Williges (*)

Considerando a comunidade de duas das mais importantes universidades gaúchas, a UFRGS e a UFSM, há um histórico de ataques racistas contra alunos negros que vem se repetindo sistematicamente desde a implantação da política de cotas raciais. Em 2007, o muro de um bar na Avenida João Pessoa, em frente à Faculdade de Direito da UFRGS, em Porto Alegre (RS), foi pichado com a frase “Negro só se for na Cozinha do R.U., cotas não!”. No mesmo local, foi pintada uma cruz suástica, símbolo do nazismo. Já na Rua Sarmento Leite, ali perto, uma calçada foi pintada com a frase “Voltem para a Senzala” [1]. Em 2021, novamente na UFRGS, um aluno da pós-graduação em Filosofia enviou mensagens de teor racista à namorada de outro aluno da universidade, que é negro, dizendo que ela “merecia coisa melhor”, ao mesmo tempo que fez afirmações como a de que os negros possuem características genéticas diferentes e exalam “cheiro típico” [2] . Na UFSM, em 2017, frases racistas foram escritas nas paredes dos diretórios acadêmicos dos cursos de Direito e de Ciências Sociais. No mesmo ano, frases preconceituosas foram encontradas em um vaso sanitário do colégio politécnico da universidade [3].  Em 2019, as frases “pretos, imundos, macacos, babuínos” e “pretos na senzala” foram escritas no banheiro da Biblioteca Central do campus [4]. Nesse ano de 2022, passados pouco mais de dois meses da retomada presencial das aulas, uma jovem aluna do Curso de Artes Cênicas da UFSM publicou em sua conta no Instagram um conjunto de declarações racistas. As postagens foram copiadas e passaram a circular amplamente em outras redes sociais [5]. Numa das postagens ela fala das abluções diárias que adota para purificar-se da “energia podre” de seus colegas negros (que ela chama de “escuros”): 

“todos os dias depois das aulas da faculdade eu tomo um banho de sal grosso e passo hidratante corporal para tentar não absorver a energia podre dessa galera que infelizmente são meus colegas. Eu tenho pavor de conviver com pessoas “escuras”, eles devem ter complexo de inferioridade muito forte em relação às pessoas brancas e geralmente essa negadinha ainda são corajosos e totalmente sem noção e vem xingar a gente. […]”

O componente de degradação, nojo e aversão é reafirmado noutro registro que compara um colega negro com excrementos.   

“tenho um colega […]que se acha a última bolachinha do pacote, para mim ele e um pedaço de bosta é a mesma coisa. É um moreno praticamente igual todos os outros que convivem com ele (…)”

Há ainda uma terceira afirmação que revela sentimentos de antipatia e desprezo por pessoas negras.  

“fiz uma coisa…o meu colega da faculdade que é preto fez uma apresentação cantando a música “quando bate aquela saudade” […] Ouvi a música antes da apresentação e fui de tênis branco na apresentação dele, até porque eu não gosto de gente preta mesmo”.

Essa série de manifestações, algumas anônimas e outras de autoria conhecida, tomados em conjunto, revelam a persistência de um racismo hediondo nas universidades. Aversão, ódio, nojo e desprezo são motes comuns do racismo em sentido tradicional: o racismo que consiste em alimentar crenças acerca da inferioridade de grupos raciais como negros, judeus, indígenas, ciganos, chineses e, mais recentemente, também muçulmanos de pele escura. É também um mote central de promoção da supremacia branca. Como observou Martha Nussbaum, num estudo fundamental sobre como ideias de nojo e repugnância foram projetadas em certos grupos oprimidos como mecanismo de subjugação e afirmação de superioridade racial por grupos dominantes:

Ao longo da história, certas propriedades repugnantes – o viscoso, o mau cheiro, o pegajoso, a decomposição e putrefação – foram monótona e repetidamente associados, verdadeiramente projetadas sobre determinados grupos, em referência aos quais grupos privilegiados buscam definir seu status de humanos superiores. Judeus, mulheres, homossexuais, intocáveis, pessoas de classe baixa são imaginados como manchados por sujeira corporal”. [6] 

Racismo e supremacismo racial não dependem, contudo, apenas da expressão individual de emoções hostis e declarações racistas em situações pontuais. Eles se articulam, ainda, a partir de uma série de práticas, compromissos, atitudes, pensamentos, estratégias políticas e estruturas sociais seculares que geram reflexos no dia a dia de instituições universitárias e em outros espaços sociais. Por isso, se queremos combater o racismo, é importante prestar atenção e punir manifestações supremacistas e de aversão racial, mas também perguntar quais outros aspectos da vida das instituições e da sociedade precisam ser transformados para que tais atos deixem de existir. Cabe perguntar, nesse sentido, o que fazer com tantos brancos racistas descontrolados nas nossas universidades? E em outros tantos lugares? Nas Câmaras de Vereadores, Assembleias Estaduais, estádios de futebol, escolas, igrejas, clubes de tiro, shoppings, grupos de motociclistas, etc, etc? O que fazer diante de manifestações racistas criminosas e injuriosas de estudantes universitários, em especial em suas redes sociais, mas não só? 

Aqui gostaríamos de olhar um pouco mais para o que está acontecendo nas universidades. Elas estão apenas em parte agindo como pensamos que deveriam. E vamos nos limitar à consideração do racismo contra negros, que tem sido os principais alvos de racismo nos campi. 

A primeira coisa a fazer é deixar muito claro do que se trata. Este é o nome do que racistas fazem: cometem crimes de racismo tipificados e identificados como tais em legislação positiva com previsão de sanções e penas, inclusive de privação de liberdade; essas pessoas podem e devem ser presas, é o que prevê nosso ordenamento legal. Mas para isso deve ocorrer o devido processo administrativo e penal, como também está previsto e é praticado em países civilizados que respeitam o estado democrático de direito. E as duas universidades (UFRGS e UFSM) anunciaram em notas providências administrativas e judiciais que poderão levar a tais penalizações para as ações racistas de seus acadêmicos. Instituições têm que cuidar disso bem, mas, como também se costuma dizer, num tempo que é “compatível com a vida”. Justiça que tarda por demais, para além dos cuidados próprios dessa atividade humana, pode causar estragos irreparáveis, e pode ser questionada como justiça, inclusive como instituição que dispensa tal bem tão necessário para nossas vidas em sociedade.

Mas isso é suficiente? Claro que não. Não é suficiente para uma instituição educacional, responsável em grande medida pela realização efetiva do processo de civilizar as cidadãs e cidadãos da sua sociedade, que somente anuncie que os princípios da diversidade e da pluralidade são constitutivos da sua natureza. Não basta exigir meramente uma concordância negativa com o que é apresentado como valores inegociáveis. Não basta alertar que tais manifestações e ações são delituosas, são contra a lei. No contexto atual, em que instituições de várias naturezas e propósitos não estão indiciando e procurando penalizar crimes cometidos por pessoas que ocupam os mais altos cargos da república, uma instituição educacional e civilizatória em sentido amplo como é a Universidade tem que exigir e praticar um acordo positivo com os valores que anuncia ter. Ela tem que dizer e sobretudo agir de modo inequívoco e contundente para evidenciar que quem não tem lugar no espaço universitário e numa sociedade civilizada são brancos racistas que se alimentam de ideários distorcidos, que espalham em profusão assustadora e nauseante, em várias mídias, como, por exemplo, a fabulação supremacista conspiratória da substituição de brancos por outras etnias em vários países.

Para pessoas assim é absolutamente necessário que fique claro em palavras e ações que existe uma condição para estarem nesse espaço: atitudes e comportamentos aberrantes como os deles implica que suas presenças na universidade estão proibidas. É de perguntar: e que outros crimes essas pessoas, por andarem dizendo e fazendo coisas desse tipo em nosso meio, cometerão daqui a pouco? Dar tiros naqueles que eles querem eliminar de um lugar que recentemente começou a ter a presença das brasileiras e brasileiros de cor negra? Explodir banheiros? Soltar bombas em anfiteatros com apresentações culturais? Formar milícias para em grupos covardemente atacarem pessoas indefesas à noite? Matar uns 30 mil? A pergunta cabe porque sabemos muito bem que ações de ódio de monta são sempre precedidas por discursos de ódio, claro que já ações hediondas também. Ora, são pessoas dispostas a isso que precisam mudar e entender que nossa sociedade é, e desde muito tempo foi, composta por brasileiras e brasileiros de várias cores e convicções, e que é por isso que variedade e pluralidade e respeito às pessoas devem ser positivamente observados e cuidadosamente alimentados por uma instituição cuja natureza é manter, incrementar e difundir o conhecimento do que há de melhor da humanidade, inclusive sobre como seres humanos podem viver conjuntamente em sociedade. A universidade é responsável por deixar muito claro em notas, mas sobretudo em ações concretas, que ela não está aí somente para alertar que atos e manifestações racistas são hediondos e que não devem acontecer em seu seio, mas que ela está aí para todas e todos que querem usufruir de tudo o que ela oferece de bom – e que em especial os mais recentemente chegados, negras e negros, o saibam via experiências – o que só é possível se se puder viver em paz e segurança no seu ambiente com os nossos semelhantes, seres humanos que simplesmente exigem respeito, inclusive de brancas e brancos. 

Aqui é preciso retomar a tese que o racismo não consiste simplesmente em expressar ideias odiosas e agressões no espaço público. O racismo também depende em grande medida de práticas e daquilo que se convencionou chamar de estruturas sociais. Não é suficiente apurar culpas, punir e eventualmente expressar repúdio por atos racistas de alunos. A universidade também tem uma responsabilidade prospectiva [7]. A responsabilidade prospectiva é aspiracional. Essa responsabilidade se expressa em números, através dos resultados de medidas implementadas, e em práticas, como o enfrentamento amplo das estruturas institucionais que alimentam o racismo. Por exemplo: as universidades federais brasileiras mais bem posicionadas nos rankings de avaliação selecionam professores por concurso seguindo padrões de qualidade acadêmica e identidade racial, via lei de cotas no serviço público. É de se perguntar: houve, de fato, efeitos transformativos no perfil racial dos departamentos didáticos, depois que a seleção por cotas foi implementada? É de perguntar: não é o caso que a política de seleção de professores por cotas tem sido meramente um expediente procedimental formal, que mais simula um compromisso mais contundente com a justiça racial? E se os processos forem, de fato, equitativos, mas somente de modo formal, como alterar as condições estruturais que respondem pelo baixo número de professores e professoras negras altamente qualificados nas universidades?

Não seria necessário que nossas universidades adotassem boas práticas como programas de formação de quadros acadêmicos negros a partir de convênios com instituições da sociedade civil que tem atuado em defesa da emancipação da população negra (como a CUFA, a Coalização Negra por Direitos, Uneafro, para citar algumas)? Ou ofertar possibilidades de treinamento, programas de intercâmbio e ações de apoio sistemático no processo formativo de cientistas negros? No domínio administrativo, da indicação de nomes para cargos de direção e pró-reitorias, que tem impacto na cultura institucional e na redução do efeito de estereótipos raciais ligados ao poder social, quais práticas têm sido efetivamente implementadas? E quanto aos currículos e à própria ciência produzida pela universidade, como ela tem tematizado e priorizado o enfrentamento de injustiças raciais? Para que as universidades brasileiras se tornem espaços realmente diversos e inclusivos, uma instituição que de fato consiga deixar brancos racistas menos confortáveis no seu seio, é preciso não só coibir atos racistas, mas avançar decisivamente na constituição de práticas institucionais antirracistas. 

Notas

[1] Estudantes denunciam racismo na UFRGS (G1/Globo)

[2] Polícia indicia estudante de Filosofia da UFRGS por racismo qualificado (G1/Globo)

[3] Polícia Federal investiga novo caso de pichação com conteúdo racista na UFSM (G1/Globo)

[4] Polícia Federal investiga novo caso de pichação com conteúdo racista na UFSM (G1/Globo)

[5]  Algumas das passagens citadas não constam na matéria, mas circularam amplamente pela internet. Uma análise mais ampla do caso pode ser encontrada numa série de matérias do jornal Diário de Santa Maria: . Ver também: Polícia Civil abre inquérito para investigar caso de racismo na UFSM.  

[6] NUSSBAUM, Martha. El ocultamiento de lo humano. Repugnancia, Vergüenza y Lei. Madrid: Katz Editores, 2012, p. 130 

[7] Para um desenvolvimento maior dessas duas concepções de responsabilidade, ver os excelentes artigos de ZHENG, Robin. “What Kind of Responsibility Do We Have for Fighting Injustice? A Moral-Theoretic Perspective on the Social Connections Model”. Critical Horizons. 2019, vol. 20, n. 2, 109–126. https://doi.org/10.1080/14409917.2019.1596202 e também “Moral Criticism and Structural Injustice”.   Mind, Vol. 130 . 518 . April 2021. doi:10.1093/mind/fzaa098. 

André Klaudat, Departamento de Filosofia da UFRGS

Flavio Williges, Departamento de Filosofia da UFSM

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 


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