Opinião
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17 de maio de 2022
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07:07

‘Fluxo indomável’ (Coluna da APPOA)

Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil
Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Marcia H. de M. Ribeiro (*)

As imagens de pessoas sendo expulsas da “crackolândia” pela polícia, à força de bombas de gás e balas de borracha, da praça Princesa Isabel no centro de São Paulo, evocam lembranças e associações. 

Final de tarde. Havíamos passado os últimos dias em inspeção dos centros de privação de liberdade para adolescentes. O silêncio que reinava no ônibus a caminho do hotel foi quebrado pelo responsável local. Avisou que faríamos um desvio no trajeto para “conhecer a crackolândia”. Estávamos em 2011. Logo paramos na esquina da alameda Cleveland com a rua Helvétia, próximo à Estação da Luz, para a explanação do “guia” antes de entrar. As interjeições dentro do ônibus tiraram alguns de nós do sono. A calçada e a rua lotadas de pessoas no comércio e no consumo de crack a céu aberto em deslocamento aparentemente aleatório. Não lembro de ter visto barracas ou guarda-chuvas para se protegerem de olhares. A lenta passagem do ônibus e nossa presença não perturbou o que mais tarde soube ser “o fluxo”.

As primeiras notificações sobre apreensão de crack no Brasil ocorreram no final dos anos 1980. O nome da droga é onomatopeia do ruído provocado pela queima no cachimbo, ou pela quebra do cristal de cocaína que se forma nas bordas da panela de refino. É o restolho. Por isso barato. A sensação de prazer dura poucos segundos. Depois vem a “nóia”, mais duradoura. Caracteriza-se pela intensificação das funções sensoriais, em particular da audição, a despertar estados de vigilância por ideias de perseguição. Como esse é o fenômeno mais duradouro do consumo, os adictos ao crack em situação de rua são chamados “nóias”, numa alusão à paranoia. 

A busca pela próxima pedra pode se instalar pelo desejo de repetir a sensação de prazer do primeiro tempo da primeira vez. Fugaz. Perdida. Nunca reencontrada. Algumas das pausas no fluxo acontecem no tempo da procura excruciante por dinheiro ou por objetos para trocar pela próxima pedra. Como observou Calligaris, “na toxicomania as propriedades químicas de uma substância a tornam quase necessária na vida de um sujeito, muito além do que ele previa ou queria quando foi procurar algum gozo ou prazer nessa substância”.

Em uma pesquisa rápida na Internet descubro que o nome apareceu em um dos jornais de São Paulo pela primeira (?) vez em 1996. Uma pequena nota policial sobre presidiários foragidos reunidos na região conhecida como “crackolândia”. Assim, em letra minúscula. Hoje escreve-se também com letra maiúscula. Como se fora bairro ou cidade de lona. Reconhecido. 

O nome “crackolândia” refere-se em geral a um território onde o comércio e o consumo a céu aberto – o fluxo – acontecem, mas queria tomá-lo também para designar e circunscrever uma experiência coletiva compartilhada. 

Várias intervenções policiais foram feitas por diferentes governos para “acabar com a crackolândia” no centro de São Paulo. Nenhuma alcançou seu propósito. Tampouco a última, semana passada. Não se tem notícia de outra droga no país que reúna traficantes e pessoas em situação de rua adictas ao crack de forma permanente a céu aberto. Unidos por uma espécie de protocooperação. Expulsos e “dispersos” de um espaço se instalam reunidos noutro. O “fluxo é indomável”, lembra um ex-usuário.

Seguindo esta fina interpretação da existência de um “fluxo indomável”, pode-se ampliar a ideia “crackolândia”. Não só para designar um território de fronteiras móveis, mas como nome do fluxo indomável, ou demoníaco, dos circuitos de gozo – pela posse dos objetos dinheiro ou droga – compartilhados pelos integrantes dessa massa (em que todos parecem um) em trânsito numa região da cidade. Por isso quando expulsa daqui se refaz ali adiante, pois o que produz a liga está para além do território, ainda que ele possa favorecê-la por suas qualidades urbanas. 

Pesquisa conduzida desde 2016 pela UNIFESP e os programas da rede de saúde mental, destinados a usuários de drogas em situação de rua, revela que dentre os principais motivos apresentados para “ficar na crackolândia” estão o acesso à droga e a segurança entre os pares. A ideia de laços de pertencimento a um conjunto de iguais, ainda que de desvalidos no senso comum, constitui um anteparo, frágil é verdade, à radical experiência de segregação dos que habitam a rua, fora do circuito de trocas convencional.

Intervir num circuito de gozo sem autorização é violência. Produz reação quase sempre agressiva. Como se pode testemunhar nos efeitos, e nas reações à última operação policial para “acabar com a crackolândia” na praça Princesa Isabel. Desmontar barracas, também lugar de moradia, e dispersar todos pelo uso da força pode até ser estratégia de segurança bruta para retomada do espaço público, para coibir o comércio de drogas e os crimes contra a vida. 

Muito diferente são as estratégias em saúde mental. Até mesmo quando uma pessoa consente com uma intervenção, como, por exemplo, na vigência de um pacto terapêutico, reage. Por isso também uma internação compulsória que opera na lógica de intervenção forçada, produz resistência ao tratamento e não assegura a priori uma saída duradoura do fluxo. Não se desconhece que há situações pontuais e individuais que reclamam intervenção desse tipo. Nunca como regra universal.

Operar nas pausas do fluxo dos circuitos de gozo de cada caso, para quiçá construir outros pontos num roteiro que só parece antecipar e conjugar tragédias, exige investimento público continuado em políticas de Estado permanentes, duradouras. Delicadeza e persistência dos profissionais da saúde em trabalho de rede numa linha de fronteira do fluxo indomável, ou das crackolândias, como preferirem. Os efeitos não são imediatos, tampouco mágicos, mas podem se mostrar interessantes, para um e outro que importam nessa equação, a longo prazo. 

(*) Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre(APPOA) e do Instituto APPOA – Clínica, pesquisa e intervenção em psicanálise

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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