Opinião
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31 de maio de 2022
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07:30

Como ser sincero nas redes sociais? (Coluna da APPOA)

Imagem: Pixabay
Imagem: Pixabay

Luciano Mattuella (*)

Tenho pensado o “parecer” como verbo privilegiado do modo de subjetivação pelas redes sociais. Ou seja, não acredito que as redes sejam apenas efeito de nossa forma de estar no mundo, mas elas também produzem um tipo de laço social específico que se manifesta também na concretude das relações cotidianas. 

As redes sociais, portanto, como organizadas por um discurso com eficácia simbólica, produtor de realidades.

Tenho também trabalhado com a hipótese de que este discurso se organiza em torno de uma lógica cínica (cinismo aqui tomado não pela via pejorativa, mas como modalidade de relação com a palavra): “sabemos bem que o outro não é tão feliz como ele se apresenta nas postagens, mas mesmo assim agimos como se isso representasse a verdade”. 

É um acordo tácito entre aquele que enuncia e quem recebe a mensagem, de forma que o destinatário ocupa o lugar de cúmplice do estatuto cínico que dá consistência ao laço.

Este ponto me interessa especialmente porque traz para a discussão um tema que me é muito caro na psicanálise, que eu gostaria de formular da seguinte forma: o que, afinal, dá consistência à palavra e porque a fala pode ter efeitos terapêuticos? Se não trabalhamos com a referência à realidade material como garantia de “verdade”, se o referente da realidade está excluído por definição, então o que nos autoriza a pensarmos que a prática psicanalítica tenha efeitos na cena do mundo?

Em tempos de café descafeinado, cerveja sem álcool, chocolate sem açúcar, leite sem lactose, pão sem glúten e McPicanha sem picanha, não estaríamos autorizados a nos ressentirmos de uma “perda da essência das coisas”? Onde está a essência da palavra? 

O que vemos hoje em dia é um uso da fala em que a palavra perde a sua eficácia de ato. As fakes news são o perfeito exemplo do esvaziamento performativo no uso da linguagem: quem as propaga sabe bem que aquela informação é falsa, mas mesmo assim irá compartilhar porque condiz com os seus anseios e convicções pessoais. 

Por aí talvez possamos entender por que as redes sociais são o espaço privilegiado ocupado pela extrema-direita: quando tudo se resume à aparência, mesmo a caricatura mais exdrúxula pode mimetizar a realidade.

Ora, se as redes sociais convocam a uma forma de subjetivação pela gramática do cinismo – “sei bem que tal coisa não é verdade, mas mesmo assim ajo como se fosse” -, se vivemos em tempos de esvaziamento do poder performativo da palavra e de ascensão de uma forma performática de vida (essa passagem do performativo ao performático é importante), isso não significa que a saída seria uma busca pela suposta “essência” perdida.

A noção de essência implica a hipótese de que teríamos em nós um núcleo irredutível, uma imagem definitiva de quem somos, uma certeza de nossa identidade. 

Seria ingênuo para um psicanalista supor que a cura para o cinismo residiria na afirmação de uma certeza sobre si, tendo em vista que, seguindo a inspiração freudiana, ali onde imaginamos encontrar um “si mesmo”, nos deparamos com um “outro” que nos nos desloca da nossa garantia narcísica.

Aliás, é também própria do neoliberalismo a oferta de uma essência: “seja você mesmo”, “busco o que lhe faz bem” – não são poucas de terapias de auto-conhecimento que não passam de reproduções da lógica de alienação e adequação às demandas da cultura.

A minha hipótese é que uma forma de tensionar o império do “parecer” seja, portanto, não a busca pelo “ser” – pela essência perdida -, mas o trabalho da sinceridade. Uma “sinceridade” que não se confunda com “exposição de si”, que se manifeste como uma forma de relação com a fala que resgate a potência performativa – de ato – da palavra.

Assim, a sinceridade é o avesso da exposição. 

Quando convocamos alguém a nos falar tudo que lhe vier à mente em análise, não estamos esperando que tudo seja “verdadeiro” ou que tenha realmente acontecido, mas o convite é a que o paciente se comprometa com o que diz, reconheça em sua fala, mesmo que ela lhe pareça estranha, algo de si.

O cínico trabalha no campo da aparência e da essência manufaturada sob demanda. Narra a si mesmo a partir de uma personagem criada para assentir aos ideais de felicidade e intensidade da cultura. O sincero desconhece a si mesmo em sua narrativa pessoal, posiciona-se frente ao mundo a partir de sua história – especialmente aquela que foi esquecida.  

Desta forma, o discurso cínico supõe o acordo de auto-engano entre emitente e receptor da mensagem. Ambos concordam tacitamente que tomarão a “aparência” como verdade, que dispensarão o referente na realidade como substrato da último de verificação. 

Assim, o discurso cínico é o avesso do discurso científico. A ciência constrói suas leis e hipóteses a partir do empírico, das supostas “coisas mesmas”, procurando esvaziar a dimensão aparente, entendida como enganadora. Ainda que trabalhe com a “evidência”, esta não é imediata, é preciso que o cientista suponha que o evidente seja efetivamente equivalente ao verdadeiro. Não há auto-engano, mas sim fé no método.

Já os cínicos – que todos somos, em maior ou menos grau – sabem que a aparência é enganosa, que a evidência é só a superfície, mas mesmo assim agem como se ali estivesse a verdade do discurso. 

Reparemos como todos os termos (evidência, aparência…) vão se mostrando como decantações do objeto escópico – em outros termos, do “olhar”. Este olhar, nas redes, é difuso e seu ponto de origem é não-definível: não sabemos quem está olhando nossos posts, e partimos do pressuposto de que o outro também não saiba que vemos os seus. O anonimato, nas redes, é na verdade uma invisibilidade. O maior receio do “stalker” é o de se tornar visível por acidente, como quando “curte” por engano uma postagem de alguém ou vê os stories de quem não segue.

É por esta via da dimensão escópica que talvez possamos entender um sentimento ostensivamente presente nas redes: a inveja. A etimologia é interessante: inveja vem do latim “invidia”, que significa algo como “mau-olhado” (in: mal, errado; videre: ver). Falamos ainda hoje do cuidado em evitar o “mau-olhado” do outro que nos inveja: inveja, aqui, significa desejar que o outro não tenha algo.

Quando vemos uma postagem de alguém que parece – atenção ao verbo “parecer” – plenamente feliz, bonito ou produtivo, isto nos desperta inveja porque nos é insuportável que alguém possa ser protagonista de uma cena tão sem furos. 

Um cena que nos joga de volta à sinceridade de uma realidade que não se esgota no “parecer”, e por isso é sempre decepcionante.

Um ponto a mais: acredito que as redes sociais sublinham uma passagem que há algum tempo tem ocorrido no campo social: a da performatividade da palavra para a performance da imagem. 

A palavra é performativa na medida em que a enunciação se faz ato, ou seja, em que dizer algo implica uma mudança de posição subjetiva do emissor ou daqueles em seu entorno. Exemplo disso são sentenças como “Concedo a ti o título de Psicólogo(a)” ou “Prometo chegar às 14h em sua casa”. A partir do momento em que alguém escuta a primeira destas frases, passa a ser demandado pelo social desde o lugar de psicólogo, com todos os direitos e deveres que isso implica. Já a segunda frase coloca o enunciante em dívida com o destinatário da mensagem. 

Nas sentenças performativas, a palavra tem valor de ato.

A performance, por outro lado, implica o “fazer como”, a mimese à imagem esperada por si ou por um outro. Aqui estamos no campo da “aparência”. Em uma cultura que demanda beleza e produtividade, por exemplo, não é à toa que as redes estejam cheias de publicações como “Começando o terceiro turno de trabalho” ou selfies editadas ou com a imagem “filtrada”. Aqui, entretanto, ambos o emissor e o receptor da mensagem sabem que esta curadoria de si é aparente, mas mesmo assim agem como se não.

Nas ações performáticas, a imagem tem o aspecto de um engodo compartilhado.

Um contraponto: entretanto, se, como diz Debord, quando “o mundo real se converte em simples imagens, estas simples imagens tornam-se seres reais e motivações eficientes típicas de um comportamento hipnótico”, então será que esta diferença real/aparente ainda opera de forma tão binária nos dias de hoje?

Se nos sentimos efetivamente invejosos quando vemos o quanto o outro parece estar sendo mais produtivo, ou quando o conhecido posta aquela foto linda e sedutora, será que teríamos razão em menosprezar este sentimento em reação àquele surgido a partir da “realidade”? 

Mesmo sabendo que se trata de um acordo de auto-engano de dupla via, será que a prevalência da imagem não vai ofuscando o cinismo deste acordo e, assim, a gramática das redes passa a conjugar os verbos do “mundo real”? 

Afinal, sofrer os efeitos do discurso social não é um escolha. 

Não há como não sermos afetados pelas demandas que organizam o laço social. Por sermos seres de linguagem, nascidos em um caldo cultural que nos antecede, por termos sido antecipados por um discurso que nos transmite os ideais vigente, é impossível pensar um “fora” do mundo. 

Nós não só estamos na Cultura – nós somos a Cultura e veiculamos as suas demandas ao mesmo tempo em que temos que dar conta delas. 

Não há um fora. 

Aquele que faz da sua vida um manifesto de recusa a cumprir as demandas de produtividade, beleza, e felicidade não faz mais do que confessar o quanto é afetado pelo discurso normativo. Narrar-se “contra” é uma forma de alienação talvez mais profunda do que “vender a alma pro diabo do capitalismo”.

Afinal, podemos supor que a nossa relação com a Cultura é de hipnose: nós estamos desde sempre subjetivados pelo discurso social, um discurso que se apresenta por palavras, mas também por imagens de satisfação que nos surgem como promessa e como demanda.

As redes sociais nos ajudam a pensar este ponto. Afinal, o que é o Instagram senão um desfile de cenas de performance de satisfação felicidade, produtividade e beleza? Aqui podemos pensar os influenciadores e as celebridades como figuras que encarnam a função da manutenção do sono performático. 

Se, como Freud propõe, nós somos todos os personagens de um sonho, então nós também nos identificamos àqueles cujas vidas parecem tão satisfatórias. Ainda que critiquemos, nós não temos como não estarmos ali naquela cena também.

O espectador não está de fora: ele está na cena, seja reduzido a objeto olhar, seja representado por algum dos elementos ali presentes. O voyeur inveja a satisfação que observa: fechar os olhos só faz com que ele imagine a cena ainda mais nítida.

O que nos resta é, ainda seguindo a inspiração freudiana, supor que há um ponto de despertar onde as representações de satisfação não dão conta de narrar a totalidade da vida – o “umbigo do sonho”, segundo Freud. Como quando sonhamos que estamos caindo e, justo na hora de batermos no chão, acordamos, uma vez que não temos representação da morte.

Fica, então, a pergunta: onde está o umbigo do sonho das redes sociais?

(*) Luciano Mattuella é psicanalista, membro da APPOA.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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