Opinião
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31 de maio de 2022
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19:19

Breves considerações sobre liberdade e democracia (por Carlos Frederico Guazzelli)

Por
Sul 21
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Foto: Guilherme Santos/Sul21
Foto: Guilherme Santos/Sul21

Carlos Frederico Barcellos Guazzelli (*)

Ser livre não significa fazer tudo o que se quer: a plena possibilidade de realização da vontade, individual ou grupal, não é liberdade – é sim poder, e poder absoluto.

Por liberdade pode-se entender muitas coisas, inclusive coisas opostas. Trata-se de termo com forte apelo simbólico, mas conteúdo semântico impreciso e variável – conforme as determinações históricas e culturais, sociais e políticas do sujeito envolvido. Como tantas outras palavras do gênero, ela carrega a característica linguística que os estudiosos denominam de vaguedade: vagos são aqueles significantes marcados pela imprecisão de sentido – tão recorrentes, aliás, nas linguagens ditas “naturais”, aquelas que o sujeito usa para falar e escrever.

Aos efeitos destas despretensiosas notas, adota-se aqui a concepção de liberdade do existencialismo, sobretudo dos existencialistas franceses – Sartre, Merleau-Ponty, Camus – para os quais ela consiste na possibilidade de escolha. Mas cabe esclarecer: o ser livre é o que pode optar – pela conduta ou postura, pelo gesto ou opinião – com responsabilidade pela escolha feita. Por isso, para estes filósofos, “os seres humanos estão condenados a serem livres” – decorrendo esta faculdade única (que os outros animais não possuem, adaptados naturalmente que são e movidos pelas determinações da natureza) de sua própria condição peculiar (consciência e liberdade).

De acordo com esta ótica, pois, a liberdade é faculdade – ao passo que o poder, mesmo o não-absoluto, é prerrogativa. Isto quer dizer que, como decorrência necessária das relações políticas que o instituem, os detentores do poder dispõem de meios e mecanismos – que podem ou não ser legítimos – para impor limitações ou restrições aos demais membros do corpo social. 

Como tais instrumentos de imposição são privativos ou exclusivos dos detentores de poder, diz-se que são suas prerrogativas – na medida em que seu exercício por um, ou alguns, se dá em detrimento de outros. Já isto não ocorre com a liberdade. Senão, vejamos.

Ocorre que, tanto considerada individual como coletivamente, a liberdade é elástica, por assim dizer: seu exercício por uns não importa, necessariamente, no impedimento de usufruto de parte dos demais. Consistindo ela, como se viu, na faculdade de escolha responsável, por parte de indivíduos ou grupos, dependendo do regime político adotado por uma determinada formação social, seu exercício por parcela dos membros, não apenas não impede como até mesmo estimula e amplia o dos demais.

Importante referir, nesta altura, que tanto no que se refere aos poderes (prerrogativas), quanto às liberdades (faculdades), a experiência histórica consagrou a necessidade de estabelecer as condições e limites para seu exercício: este é o papel do Estado; e, nas sociedades modernas e contemporâneas, em especial no chamado Ocidente – conceito cultural e político antes que geográfico – o instrumento precípuo para o cumprimento de tal tarefa é a lei.

Cabe esclarecer que se adota aqui a concepção iluminista – ou liberal, como se queira – de que a lei é o local em que, como ensina Rousseau, o povo, soberano primeiro e último, deposita a soberania. Atentando-se a esta concepção da lei, como depósito da soberania, chega-se então ao outro conceito que se busca aqui revisitar – qual seja, o de democracia.

Certamente, esta é outra palavra dotada de forte carga simbólica e conteúdo semântico vago – variável conforme as determinações da ideologia, da história e da cultura dos sujeitos. Assim, tanto para delimitar os temas aqui tratados como, e sobretudo para manter a necessária coerência interna do presente texto, adota-se para o termo em questão o conceito informador do chamado Estado Social e Democrático de Direito

Em apertada suma, trata-se este da forma de organização estatal que, ao legado das instituições políticas trazidas com as grandes revoluções liberal-burguesas dos séculos XVIII e XIX, acrescentou as conquistas sociais, econômicas e culturais oriundas das intensas lutas que marcaram as distintas fases da Revolução Industrial, ao longo do século seguinte.

Nesta linha, concebe-se a democracia como o regime político que assegura o usufruto individual e coletivo das liberdades, bem como sua contínua ampliação a todos os quadrantes da vida em sociedade. Mais do que uma forma de organizar o exercício do poder a partir de eleições livres e periódicas – condição necessária, mas não suficiente para sua existência – a democracia consiste no espaço de convívio simultâneo das liberdades individuais (direitos e garantias fundamentais das pessoas) e públicas (direitos civis e políticos, sociais e econômicos).

O instrumento, por excelência, para o estabelecimento da coexistência destas liberdades, como visto antes, é a lei – que estatui, em normas gerais e abstratas, prévias e conhecidas, as condições e limites para seu exercício harmonioso. E, da mesma forma que acontece com as liberdades encaradas como faculdades, individuais e coletivas, o Estado Social e Democrático de Direito também estabelece o novo estatuto dos poderes – isto é, das prerrogativas de seus distintos incumbentes, nos diferentes âmbitos da vida política e social. 

  Assim, sempre por intermédio da lei – em sentido lato, abrangendo a Constituição e as leis (estrito senso), decretos e regulamentos – a democracia institui os limites e controles para o exercício, nas suas diferentes esferas, dos poderes das agências e agentes públicos. Em decorrência, nas democracias contemporâneas vige o conceito de poder-dever – segundo o qual as autoridades públicas, em todas as instâncias, devem agir sempre, e tão somente quando haja expressa determinação legal a tanto; e, da mesma forma, sempre, e tão somente de acordo com as estritas e prévias prescrições estabelecidas em lei para esta ação. Fora disso, é-lhes simplesmente vedado agir.

A pequena digressão acima feita permite vislumbrar, ainda que de forma superficial e panorâmica, o processo lento e custoso de superação, pela humanidade, das pulsões de poder absoluto de parte das classes e nações dominantes, mediante a construção, implantação e expansão de mecanismos de controle democrático, obra coletiva de engenharia política, envolvendo muitas gerações de homens e mulheres. Por elementar que isso possa aparecer aos olhos de alguns, torna-se necessário lembrá-lo, nesse particular momento da história de nosso País – e de resto, não só dele.

Como é sabido, o atual ocupante da cadeira presidencial aferra-se, em suas ações e manifestações diuturnas, à concepção primitiva e inaceitável de liberdade como possibilidade plena e incontrastável de realização dos impulsos e vontades, seus e de sua grei. 

 Assim é que, em seus contínuos e crescentes ataques às pessoas e instituições que, a muito custo, tentam controlar e limitar os efeitos das desastrosas ações e omissões de seu (des)governo – voltadas, confessadamente, à destruição das conquistas sociais e culturais, políticas e econômicas, de nossa recente e ameaçada democracia – volta e meia invoca a “liberdade”. E, da mesma forma, nas suas ameaças golpistas, nada veladas e recorrentes – que aumentam na razão inversa de sua posição nas pesquisas eleitorais – pretexta fazê-lo em defesa da “democracia”.

Isto não decorre apenas de cinismo ou da natureza grotesca e intelectualmente limitada de tão lamentável personagem – colocado no Palácio do Planalto por decisão não menos lamentável dos detentores dos “fatores reais de poder”. Sem desconsiderar estes aspectos pessoais e conjunturais, deve-se atentar à centralidade que ocupa, no discurso neofascista – como de resto, nos fascismos originais – a concepção iliberal de liberdade, considerada não mais como faculdade de escolha responsável da cidadania, mas como prerrogativa de poder absoluto do Estado – exercida por seu Chefe, como encarnação da Nação e seu espírito. 

 O mesmo se dá com a visão instrumental adotada em relação à democracia, utilizando-se de seus meios e mecanismos para ocupar os aparelhos estatais e corroer “por dentro” as instituições públicas, como ensina Boaventura Sousa Santos, de maneira a instituir o que ele chama de “democracias de baixa intensidade”. Este é o processo desencadeado, nas últimas duas décadas, pela verdadeira Internacional ultradireitista, que vem assolando, com relativo êxito, desde as nações do centro capitalista – EUA e Europa – até a periferia – Brasil e Filipinas, principalmente.     

No caso brasileiro, a campanha eleitoral, ora informalmente em andamento, antes ainda da oficialização de seu início, constitui cenário adequado à luta ideológica, visando à desconstrução, de parte dos setores democráticos da população – envolvendo progressistas, liberais e até mesmo conservadores – do discurso neofascista de liberdade e democracia brandido pelo Boçal e seus acólitos. 

  Neste particular, parece oportuno lembrar, como se fez neste mesmo espaço, a propósito de outro tema, a lição de Marx e Engels sobre o curioso efeito semântico inverso provocado pela ideologia. Para tanto, em livro postumamente publicado – A Ideologia Alemã – os grandes filósofos se socorrem de uma interessante metáfora. Fascinados que eram pelas grandes inovações tecnológicas trazidas pela Revolução Industrial, eles buscaram na nascente fotografia a maneira de demonstrar, didaticamente, como se dá aquele processo: tal como ocorre na câmera escura utilizada para revelar as imagens captadas no filme – onde restam invertidas as posições à esquerda e à direita, acima e abaixo, o claro e o escuro, na cena retratada – o sujeito interpelado ideologicamente é induzido a perceber os conceitos brandidos de forma inversa pelo emissor.

Isso é o que explica que um notório líder fascista invoque a liberdade, para tentar suprimi-la; e a democracia, para tentar destrui-la. Cabe-nos agora, nos próximos meses, romper a escuridão do antro onde está sendo revelado o filme da barbárie fascista, e queimá-lo à luz do sol da verdade.

(*) Defensor Público aposentado, Coordenador da Comissão Estadual da Verdade/RS (2012-014)  

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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