Opinião
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12 de abril de 2022
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07:46

Uma História da Leitura – somos os livros que lemos (Coluna da APPOA)

Foto: Guilherme Santos/Sul21
Foto: Guilherme Santos/Sul21

Lucia Serrano Pereira (*)

Dizer que a leitura é um prazer, é dar pouco lugar a ela. A leitura tem a ver com a fonte de todo prazer,  e mais além, é a posição que declara o forte amor pelos livros, de Alberto Manguel. Tudo bem que aí já podemos contrapor incluindo alguns outros importantíssimos prazeres da condição humana, mas deixemos de lado isso por ora, para abrir as cartas dessa contundente afirmação, para que possamos encontrar a riqueza que ali se apresenta.

Uma História da Leitura foi finalmente publicado em 2021 no Brasil, pela Companhia de Bolso, ligada à Cia das Letras. É um festejo que chegue a nós, depois de publicada em meados dos 90, e ter percorrido o mundo de leitores como A History of Reading, escrito no original em inglês, por este autor argentino que percorreu tantos lugares em sua vida. Foi daqueles leitores especiais para Borges, que frequentavam sua casa para ler em voz alta, quando Borges já não podia mais. Década de 60.  Dirigiu a Biblioteca Nacional de Buenos Aires. Nos setenta viveu em Paris e Londres, e também no Taiti, sempre com a escrita, e com o trabalho de editor ( Les Éditions du Pacifique). Inglaterra, França novamente, década de 80 no Canadá. Escritos, obras, prêmios, cátedras temporárias em vários lugares. Em 2020 doa sua biblioteca de 40.000 livros o Centro de Estudos da História da Leitura, que vai dirigir em Lisboa. Fiquei impressionada com a trajetória de vida que, convenhamos, dá inveja a qualquer comum dos mortais que possa imaginar essa diversidade de lugares sempre tramada com o trato dos livros. Também ensaísta e tradutor, além de escritor e editor, Manguel esteve em Porto Alegre, na Feira do Livro de 2014, palestra que tive a sorte de assistir, e que foi literalmente uma viagem. A fala anunciava “Somos os livros que lemos”, e reencontro com ele essa paixão na qual me sinto embarcada desde sempre.

Quando algo me acontece, ele diz, vai  buscar a relação com algo que leu. Como se essa referência ajuda, faz parte da elaboração da experiência. Mesmo que tenham lacunas. Consulta os livros que lhe oferecem dicas ( não sei se a melhor escolha de tradução, talvez bússolas fosse melhor; ou uma palavra para contribuir para a sequencia, como diz Benjamin em O narrador) ). Os que mais procura para recolher orientação são Alice no país das maravilhas, os contos de Borges e os poemas de Mahmoud. Nas listas de leituras pode sondar amizades – sabe que vai ser amigo de quem diz que é louco por Montaigne e que poderia levar os seus Ensaios para uma ilha deserta ou para a última leitura antes de morrer. Tem afirmativas assim, fortes, e vai ao longo de todo o percurso desdobrando seus achados e gostos e nos apresentando o maravilhoso mundo da Biblioteca.

“Uma biblioteca, antes que o leitor faça uma escolha, é como a sopa primordial de átomos da qual surgiu toda a vida”. Quando criança, reconhece saber sobre o amor através das Mil e uma noites; em romances policias aprendeu sobre a morte, em Rudyard Kipling a relação com a selva; da possibilidade de fazer aventuras incríveis com Julio Verne, e assim quando algo da experiência se apresenta mais tarde na vida mais diretamente, na experiência,  é como se algo já tivesse na espera, com palavras, com as quais poder nomeá-las. Para mim, na associação solta, o primeiro que me ocorre é  da infância Os doze trabalhos de Hércules, não pelo herói e seus feitos, mas por aquele fascinante mundo dos deuses gregos onde tudo acontecia, poder, amores, ódios, vinganças, salvamentos, conquistas e transformações inimagináveis. Dava para viver lá. Pedir ajuda aos deuses, cheios de recursos frente a nós, pequenos, cheios de descobertas e incertezas…

Manguel nos leva. Ler o que os escribas da Mesopotâmia conseguiram formular, ter acesso aos arquivos de um outro tempo, buscar isso das outras vozes de outros tempos que nos alcançam. O leitor com seu poder, que ao mesmo tempo levanta no social uma série de medos: “por ter a arte de trazer de volta à vida uma mensagem do passado, por criar espaços secretos nos quais ninguém mais pode entrar enquanto a literatura acontece, por poder redefinir o universo e se rebelar contra a injustiça, tudo por meio de uma determinada página”.

Vem até nós a marca do poder subversivo da leitura, que nos abre, nos transporta, nos move. Ler como forma de abordar o mundo e a nós mesmos pelo encontro com palavras que de algum modo se endereçam a nós, a cada um, “de longe e há muito tempo”.

Leitura, termo que vai muito além da página. A página é só um de seus disfarces, diz ele. Ler tem a ver com o astrônomo que lê um mapa de estrelas que já não existem, o arquiteto japonês que lê a terra onde vai ser construída a casa; o zoólogo que lê os vestígios e rastros que os animais deixaram em seu caminho na floresta; o jogador que lê, de certa forma, as cartas do parceiro para poder armar sua jogada; e mesmo a leitura que os pais fazem do que o bebê pede, quer, ou precisa.

Aqui já mais perto do nosso território. Supor, endereçar, reconhecer, cifrar, decifrar.

O inconsciente lê uma escrita, e está em sua função cifrar, como nos sonhos, e contar com o endereçamento em uma escuta, quando se trata de uma psicanálise, para que o endereçamento anime a suposição de um deciframento, por estar em exercício de fala, contando com a transferência que se estabelece analisante/analista.

Podemos lembrar do conto de Edgar Allan Poe A carta roubada, a tão trabalhada mudança de cada personagem com relação ao poder que circula, dependendo nas mãos de quem está o envelope. Não se sabe o conteúdo da carta, mas ela transita entre a rainha o rei e o ministro, sendo que a um não é dada a ver essa circulação. Mas o leitor sabe que dependendo de onde ela vai parar as consequências vão se precipitar. Se ressalta o lugar, a posição, o “de onde” se aborda algo, para além do que se toma por conteúdo direto. Assim em uma escuta. O “como” se fala, com os lapsos, os tropeços, os sonhos, as piadas… Como se lê.

A leitura, então, desde sempre. Desde as tabuletas mesopotâmicas que eram blocos de argila retangulares de às vezes pouco mais do que 7 cm, o que faz pensar também no kindle que cabe na mão, a leitura de  Manguel atravessa a história da literatura na função do leitor, com a ideia principal de que literatura não constitui dogmas, respostas fechadas, e sim perguntas.

E, sabemos, as perguntas, a possibilidade de formulá-las são a riqueza do simbólico, do que vem a nosso favor, na direção de nos situarmos para poder seguir. “Sei que numa página, em algum lugar de minhas prateleiras, olhando para mim agora, se encontra a questão com a qual estou lutando hoje, colocada em palavras, talvez há muito tempo, por alguém que não poderia saber da minha existência”. Relação que transporta pelos tempos e pelo espaço e permite um encontro consigo e com o mundo.

(*) Lucia Serrano Pereira é psicanalista, membro da APPOA.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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