Opinião
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29 de abril de 2022
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15:45

Um decreto sem graça (por Carlos Frederico Guazzelli)

Processo já tinha maioria formada desde fevereiro, mas processo foi interrompido por pedido de vista do ministro Nunes Marques. Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil
Processo já tinha maioria formada desde fevereiro, mas processo foi interrompido por pedido de vista do ministro Nunes Marques. Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Carlos Frederico Barcellos Guazzelli (*)

Desde que assumiu, o atual presidente da República passou a submetê-la a periódicos surtos de autoritarismo, por palavras, atos e/ou gestos. Não passou despercebido aos observadores mais atentos, desde o início, que esta é sua forma de governar, caracterizada pelo espetáculo contínuo mediante o qual mobiliza, de modo especial pelas chamadas redes sociais virtuais, seu rebanho de seguidores – enquanto o restante da administração federal se dedica à tarefa de destruição meticulosa dos avanços conquistados com a redemocratização do país, em todas as áreas: na educação e na ciência, na saúde e no meio ambiente, nos direitos sociais e na segurança pública, na cultura e na economia. 

  Tarefa destrutiva, aliás, que o tosco dirigente tratou de anunciar logo de saída, no jantar que lhe foi oferecido, e ao seu caquético guru, num quintal dos fundos de Washington, na sua primeira viagem internacional, ao discursar pateticamente agarrado a um guardanapo…

Nos últimos tempos, devido à pandemia e às criminosas trapalhadas que cometeu, contribuindo diretamente para o desastroso quadro de mortes e descontrole da doença – bem como à bisonha gestão da política econômica, entregue ao inacreditável Guedes – as ameaças explícitas à democracia feitas pelo bronco governante seguiram um roteiro crescente, ao ponto de se preparar sem disfarces o desfecho de um golpe de estado quando das comemorações do 7 de Setembro, no ano passado, tendo como pretexto as contínuas derrotas que lhe foram infligidas nos Tribunais Superiores. A tentativa só foi frustrada, como se sabe, devido às movimentações atentas e efetivas da Suprema Corte, respaldada pela militância cidadã de parcela dos parlamentares e pela oposição da própria mídia conservadora, porta-voz dos donos do capital. 

Mas, depois de alguns meses de refluxo, provavelmente em razão do crescimento da candidatura de Lula – apontado em todas as pesquisas, até mesmo com a possibilidade de vitória no primeiro turno – o ex-capitão voltou nos últimos tempos a rosnar contra o regime democrático, retomando as costumeiras diatribes contra alguns ministros do TSE e do STF, não os poupando, inclusive, de grosseiras ofensas pessoais. E para escalar o conflito, aproveitou justamente o episódio da condenação de um deputado de sua grei – que não apenas ofendeu seus componentes, como instigou ataques da população ao Supremo Tribunal Federal.

Pois para pasmo geral – se é que alguma coisa possa ainda surpreender, vinda de tal personagem, imbuído de evidentes propósitos fascistas – no dia seguinte à condenação daquele parlamentar, por dez votos a um, a oito anos e nove meses de prisão, em regime fechado, por crime contra o Estado Democrático e obstrução à justiça, o Boçal editou decreto concedendo “graça presidencial” ao seu espadaúdo assecla. E, na costumeira laive em que anunciou o ato – lendo-o com a também costumeira dificuldade com as palavras, e ao lado de sua cônjuge – fez questão de ressaltar que ele “será cumprido…” (sic).

Desde a semana passada, em artigos e pronunciamentos, os mais diversos juristas vêm ressaltando as impropriedades do referido decreto, que o tornam inconstitucional e ilegal. Tais manifestações destacam, corretamente, que malgrado o Presidente da República disponha da faculdade de “…conceder indulto e de comutar penas…” (artigo 84, inciso XII, da Constituição Federal), nada impede, antes tudo recomenda que tais atos sejam examinados no seu aspecto formal e,  sobretudo quanto à sua conformidade ou não frente à Lei Maior. Nesta senda, aponta-se que a esdrúxula medida adotada pelo atual ocupante da curul presidencial, é nula – na verdade, até mesmo inexistente, do ponto de vista jurídico, pois sequer foi publicado, ainda, o acórdão que ela buscaria desconstituir. 

  Por óbvio, não havendo ainda sentença – no caso, acórdão – não há ainda pena e, portanto, não há o que indultar. Parece que, no afã de aumentar a pressão contra  os supremos magistrados do país, aquele que se proclama “imbrochável”, incorreu em fiasquenta ejaculação precoce…

Há vários outros vícios apontados por constitucionalistas e administrativistas – como o desvio de finalidade e a violação aos princípios constitucionais da moralidade e da impessoalidade – capazes por si só de justificar a esperada invalidação do canhestro ato, que visa claramente acuar os ministros do Supremo, na escalada autoritária que, se não for obstaculizada, levará ao golpe tantas vezes prometido pelo autocrata do Planalto. Mas a natureza jurídica da medida invocada – que é de Direito Penal, pois trata de pena e de forma de extinção de punibilidade; e de Execução Penal, pois constitui incidente de execução – aponta para a presença de outros motivos, bastantes também para a fulminarem de vez.

Assim é que ela carece da devida fundamentação, isso não apenas na Carta Magna, como também na legislação infraconstitucional que rege o instituto do indulto – sendo de todo improcedentes os “consideranda” alinhados no cabeçalho do malsinado decreto. A começar, pela invocação da “graça presidencial”, quando é certo que a Constituição de 1988 – na linha do que já o fizera a Lei de Execuções Penais, editada pouco antes, na Reforma Penal de 1984 – não mais empregam aquela vetusta expressão, adotada entre nós na Carta do Estado Novo, apelidada de “Polaca”.  Com efeito, e como se viu acima, no dispositivo que versa a atribuição presidencial em questão, o constituinte a substituiu por “indulto” – termo técnico mais adequado ao conceito em tela. Aliás, a Constituição Federal só se refere a graça no inciso XLIII do artigo 5º, ao prescrever a vedação de sua concessão, bem como de anistia ou prescrição, aos delitos lesa humanidade ali arrolados, bem como aos crimes hediondos e de tráfico ilícito de entorpecentes.

Cabe recordar que o Código de Processo Penal, lei invocada para a adoção do favor concedido ao deputado que tem músculos até entre as orelhas, continha algumas regras destinadas a regular a execução das penas, o mesmo ocorrendo com o Código Penal – ambos os diplomas, diga-se de passagem, instituídos durante a ditadura varguista mediante a edição de decretos-lei, no início da década de 1940. Em vista de sua desatualização e insuficiência, em face do crescimento e complexidade do sistema penitenciário, e atendendo aos reclamos da comunidade jurídico-penal, foi procedida, já nos anos finais do outro regime ditatorial, aquele decorrente do golpe de 1964, ampla reforma do sistema penal brasileiro – com a edição de uma nova Parte Geral do Código Penal e da nova Lei de Execução Penal, a chamada LEP.

  Esta última, verdadeiro código das execuções criminais, no qual é disciplinada exaustivamente a execução das sanções penais – privativas de liberdade, restritivas de direito e pecuniárias – como não poderia deixar de ser, regulamenta com detalhes, entre os chamados “incidentes de execução”, a concessão “da anistia e do indulto”, nos artigos 187 a 193. No que se refere ao “indulto individual” – que é o que se trata aqui – a LEP estabeleceu no artigo 188 que “…poderá ser provocado por petição do condenado, por iniciativa do Ministério Público, do Conselho Penitenciário, ou da autoridade administrativa”. E nos artigos seguintes prescreve a forma pela qual o pedido deve tramitar, inicialmente junto ao Conselho Penitenciário, até ser remetido, com os documentos a ele anexados, ao Ministério da Justiça, onde será processado a fim de ser submetido ao Presidente da República. 

  Somente então, depois que este eventualmente conceda, total ou parcialmente o indulto, é que o “…o juiz declarará extinta a pena ou ajustará a execução aos termos do decreto, em caso de comutação.” (LEP, artigo 192).

Fácil concluir, pois, que a nova lei, criando procedimento próprio para o indulto individual, revogou tacitamente as regras anteriores, previstas no Código de Processo Penal, inclusive o artigo 734, em que se baseou o autoritário presidente para conceder a medida “ex officio”. Isto, não apenas por decorrência forçosa do disposto no artigo 204 da LEP, mas também, e sobretudo da redação da parte final do já citado artigo 84, inciso XII, da Constituição Federal – que ao instituir a faculdade do Chefe do Executivo conceder indulto, total ou parcial, prevê que o faça após  “…audiência, se necessário, dos órgãos instituídos em lei”. Ou seja, o Conselho Penitenciário e o Ministério da Justiça, como previsto na LEP.

Consoante se observa, também pelo aspecto da legalidade estrita, não se sustenta a medida abusivamente concedida pelo autocrata a um de seus mais truculentos capangas. E, como dito antes, ecoando as unânimes vozes do mundo jurídico, o Supremo Tribunal Federal, uma vez provocado – e já o foi, por vários atores políticos – pode e deve, examinando os aspectos formais do decreto incriminado, frente às normas e princípios constitucionais e legais, declarar sua invalidade absoluta.

Entretanto, é mais do que sabido que a questão posta com sua adoção, mais que jurídica, é essencialmente política: trata-se de mais um ataque direto do autoritário ocupante do Planalto ao único Poder da República que o tem enfrentado, ainda que timidamente, e procurado impor algum limite à marcha golpista por ele ora retomada, com redobrada força, em vista de sua anunciada derrota no próximo pleito eleitoral.

Espera-se que o Supremo não se intimide e que todas as instituições e entidades sociais interessadas na manutenção da democracia – aí incluídas as ditas “elites”, que também perderiam, e muito, com um novo regime ditatorial – reajam, como o fizeram em setembro passado. 

(*) Defensor Público aposentado, Coordenador da Comissão Estadual da Verdade/RS (2021-2014)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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