Opinião
|
12 de abril de 2022
|
14:02

O Sistema de Justiça e o fenômeno da violência policial (por Mariana Py Muniz)

| Foto: Fernando Frazão/EBC
| Foto: Fernando Frazão/EBC

Mariana Py Muniz (*)

O livro “Polícia! Para quem precisa de Justiça. Como a Magistratura representa a violência policial”, da editora D’Plácido, foi lançado no dia 31 de março de 2022 na sede da ADPERGS, em Porto Alegre/RS, e é fruto da minha tese de doutorado junto ao PPG das Ciências Sociais da PUCRS. A inquietação de pesquisar esse tema nasceu da minha experiência enquanto coordenadora do Centro de Referência em Direitos Humanos da Defensoria Pública do RS, nos anos de 2016 e 2018, quando prestávamos atendimento multidisciplinar às vítimas de violência estatal.

Ainda no ano de 2016, em parceria com o GPESC, Grupo de Pesquisa coordenado pelo Professor Doutor Rodrigo G. de Azevedo, apresentamos na Assembleia Legislativa do Estado um diagnóstico sobre violência policial realizado tendo por base os expedientes que tramitavam no Centro de Referência à época. Dessa análise inicial, onde se buscou verificar quem eram seus autores, vítimas, circunstâncias do fato e encaminhamentos realizados, no caso, de acompanhamento das três esferas possíveis de responsabilização do agente público (administrativa, criminal e cível), é que nasce a minha inquietação de buscar compreender como os juízes enxergam o fenômeno da violência policial e quais implicações esse olhar produz não apenas no fenômeno em si, mas no próprio sistema de justiça.

Através de aportes sociológicos, antropológicos e de ciência política, por meio de metodologias diversas, como observação de audiências, análise de decisões judiciais e entrevistas semiestruturadas com Desembargadores e Juízes integrantes da Justiça Estadual do RS, e, compreendendo a centralidade dos Juízes nesse sistema, pois, de acordo com Bourdieu as suas decisões são atos políticos com força de operar transformações e impactos no mundo social, e, considerando o diagnóstico anteriormente citado e realizado que apontava fragilidade na responsabilização dos agentes no âmbito tanto administrativo, ou seja, perante suas corregedorias, e criminal, no caso aqui ingressando o debate acerca do controle externo da atividade policial dado constitucionalmente ao Ministério Público, e enxergando a violência policial enquanto uma estrutura incorporada às instituições regulamentares no Brasil, é que construí a hipótese de internalização dessa estrutura pelos Juízes, conformada pela complementariedade das práticas policiais ao sistema de justiça para tencionar que a construção da representação social do fenômeno da violência policial pelos Magistrados, ou seja, como o enxergam e assim constroem a própria realidade, apontaria para a sua legitimação, o que, evidentemente representaria abalo a própria Democracia.

A pesquisa é muito rica e propriamente aponta não para conclusões, mas para uma agenda de pesquisas possíveis, reforçando as pesquisas anteriormente realizadas no âmbito das Ciências Sociais. Ao fim e ao cabo, é possível perceber uma linha que acompanha todo o campo empírico que é a da não nominação da expressão violência policial, o que nos aponta para a não compreensão dessa violência enquanto estrutura e que se entrelaça ao valor concedido a palavra do policial em detrimento da vítima, essa caracterizada pelo processo de sujeição criminal do qual nos fala Michel Misse.

A violência policial, assim, estaria contida no excesso ao estrito cumprimento do dever legal, operando em muitos casos numa blindagem judicial ao excesso do uso da força, porque esta seria inerente à própria profissão e a função policial. Os magistrados possuem uma carência e dificuldade de identificação das múltiplas violências existentes, o que se inter-relaciona com a própria cultura jurídica, com a formação desses agentes e com o processo de profissionalização ainda em curso da magistratura. Ocorre que tal representação contribui e chancela o arbítrio e a arbitrariedade policial. Além disso, reconhecer a violência policial e declará-la seria o mesmo que abandonar a presunção de legitimidade e de legalidade do saber, do fazer e do atuar policial, a qual embasará os indícios e as evidências colhidas pela própria policial e que se tornarão em prova nos processos subsequentes.

Dessa forma é que a pesquisa aponta para a complementariedade das práticas policiais ao sistema de justiça, porque os juízes precisariam da polícia para o exercício do seu próprio poder e para legitimação do seu lugar junto ao sistema, operando no monopólio do exercício da violência simbólica do qual nos fala Bourdieu. Por outro lado, o campo empírico nos revela que dessa forma a representação social construída acerca do fenômeno da violência policial reproduz a desigualdade que informa o tecido social brasileiro, hierarquizando e conferindo graus diversos de cidadania entre as pessoas, o que impede a solidificação de um Estado de Direito e da própria democracia.

Assim é que a obra nos convida a refletir e a desvelar não tanto o que está invisível, mas aquilo que por excesso de visibilidade se tornou invisível, pois, citando Saramago em minha tese, finalizo pretendendo que ensaiemos sobre a cegueira para que, mesmo cegos, possamos enxergar e intervir nessa realidade, que nada mais é do que aquela construída por nós mesmos.

(*) Mariana Py Muniz, Doutora em Ciências Sociais pela PUCRS, Mestra em Ciências Criminais pela PUCRS e Defensora Pública do RS.

***

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora