Opinião
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19 de abril de 2022
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11:11

Caetanear o que há de bom (Coluna da APPOA)

Caetano Veloso (Foto: Fernando Young / Divulgação)
Caetano Veloso (Foto: Fernando Young / Divulgação)

Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr. (*)

Após os dois anos desta pandemia que marca sensivelmente as nossas vidas, os quase quatro anos deste governo devastador em todos os aspectos da dignidade humana e a recente ameaça de uma possível guerra nuclear (que extermina vidas de fora cruel, produzindo milhares de refugiados em todo o mundo), pode-se dizer que teríamos razões suficientes para estarmos melancólicos, senão desanimados. 

No entanto, a nossa responsabilidade com os outros nos convoca a encontrar as frestas possíveis para relançarmos a aposta naquilo que as palavras e os gestos portam de vida, transpondo assim o gozo da destruição e os imperativos de morte. Essas frestas de luz potencializam o desejo e renovam a esperança de que cantar aquilo que há de bom pode ser uma travessia possível em tempos difíceis. 

De certo modo, sempre acreditei nisso, mas o privilégio de assistir Caetano Veloso, no recente show realizado nos dias 08, 09 e 10 de abril, no Auditório Araújo Vianna, reforçou essa forma de lidar com as coisas. Parece-me impossível ouvir Caetano sem fazer aquilo que outro mestre da música e da cultura brasileira, em sua imensa potência criativa, cunhou: Caetanear. Djavan, no início da década de 80, ao compor a letra da canção Sina, teve a sensibilidade de homenagear o amigo e demonstrar toda a sua admiração por ele, transformando seu nome em verbo. A música, com suas metáforas luminosas, compõe o quinto álbum, diga-se de passagem, com o título sugestivo para os tempos atuais: Luz. Lembram? Começa assim: “Pai e mãe, ouro de mina, coração, desejo e sina, tudo mais, pura rotina, jazz […]”. Mais adiante, somos presenteados: 

O luar, estrela do mar, o sol e o dom

Quiça, um dia a fúria a fúria desse front

Virá lapidar o sonho até gerar o som

Como querer Caetanear o que há de bom

Caetanear o que há de bom não se confunde com negacionismo. Pelo contrário, trata-se de um ato político o desafio diário de fazer frente aos diversos problemas da vida e ter a coragem de enfrentar as fúrias destrutivas que jamais irão tirar o nosso luar, o nosso sol, o nosso dom e tampouco, destruir o direito de vivermos num país democrático. Djavan, em sua declaração de amor ao amigo, faz um convite para lapidarmos o sonho até gerarmos o som. Lindo isso, pois lapidar envolve cuidado, delicadeza, construção, palavras sempre necessárias, particularmente, na atualidade.  

Cabe lembrar que a letra começa com duas palavras muito especiais: luar e estrela.  Gosto da sonoridade e, mais ainda, do par de letras que inicia a primeira palavra e daquele que termina a segunda, pois estamos em ano de eleições e vamos precisar de luar e estrela para atravessarmos a barbárie. 

Além de afagar a alma com canções que fazem parte de nossa brasilidade e de embalar corpos enferrujados diante daquele senhor de quase 80 anos, Caetano deu um verdadeiro testemunho sobre a importância das diversas parcerias estabelecidas ao longo da vida. Naquele momento, pudemos escutar tanto o relato da história de algumas músicas quanto o reconhecimento do valor das personalidades que influenciaram a sua trajetória cultural.

Generoso com os outros, Caetano colocou em ato as palavras do parceiro: Caetanear o que há de bom. Portanto, depois de quatro décadas, talvez seja possível dizer que Djavan foi preciso ao metaforizar o nome do amigo. Esse, por sua vez, ao reconhecer o valor dos outros em sua vida, estaria a Caetanear ou a Djavanear? Na verdade, não importa muito a resposta: a questão é que, após dois anos com medo de respirar e após quase quatro anos respirando o ar fétido dessa milicoevanlelizaçãomilicianapornocratica, precisávamos desse ar de vida, de metáforas, de luz, de amizades e de amor que Caetano e Djavan não se cansam de musicar.

Que o sonho até gerar o som como querer Caetanear o que há de bom possa lapidar um ano de luz.

(*) Psicanalista, membro da APPOA e do Instituto APPOA, doutor em Psicologia Social e Institucional – UFRGS, autor dos seguintes livros Perversões: o desejo do analista em questão. Curitiba: Editora Appris, 2019; Ensaio sobre as pedofilias. São Paulo: Escuta, 2021.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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