Opinião
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28 de abril de 2022
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08:57

A arte necessária em tempos sombrios (por Célio Golin)

Em setembro de 2017, artistas e ativistas ocuparam as escadas do Santander Cultural com mensagens de “censura não” | Foto: Guilherme Santos/Sul21
Em setembro de 2017, artistas e ativistas ocuparam as escadas do Santander Cultural com mensagens de “censura não” | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Célio Golin (*)

O que vivemos hoje no Brasil faz lembrar um dos momentos mais trágicos e obscuros vividos pela Humanidade, quando nazistas destruíram o que chamavam de arte degenerada, perseguindo artistas que tinham por responsáveis pela decadência moral da sociedade.

Considerando essa memória, aqui mesmo em Porto Alegre houve um exemplo dos mais marcantes a ilustrar muito bem esse cenário: em 2017 o Movimento Brasil Livre promoveu o fechamento da exposição Queermuseu que ocorria no centro da cidade. Esse evento repressivo teve repercussão internacional!

Amparado por setores da direita e pelo capital internacional que repercutiam aqui no Brasil, o MBL iniciou uma escalada de ataques a pautas culturais que considerava imorais, incitando discursos de ódio impregnados de preconceito. No mesmo passo, promoveu perseguições a políticos de esquerda que defendiam a pauta dos Direitos Humanos.

O Queermuseu acontecia no Santander Cultural, um espaço de referência das artes e cultura em Porto Alegre, quando o MBL passou a ocupar ostensivamente as galerias que expunham as obras de arte queer, afrontando a curadoria da mostra. O MBL chegou ao ponto de constranger as pessoas que a vinham visitar! A Direção do Santander, atacada, não quis defender o projeto e simplesmente se curvou à pressão do MBL: encerrou a exposição!

Então o Nuances, juntamente com outras entidades que compõem o coletivo que organiza a Parada Livre, rapidamente realizou um importante ato de protesto na frente do Santander, ocupando a rua como forma de resistência.

Na sequência da manifestação, os integrantes do MBL que ali estavam presentes, incluindo o próprio Mamãe Falei, foram escoltados pela Brigada Militar e recebidos no Paço Municipal pelo prefeito Nelson Marchezan Jr. O Prefeito declarou na imprensa que a mostra continha “imagens de zoofilia e pedofilia”. A Coordenadoria de Políticas para a População LGBTQIA+ da Prefeitura Municipal, que em tese deveria defender as pautas LGBTQIA+, uniu-se ao Prefeito, e falou que as obras expostas ofendiam as crianças. Cabe ressaltar que alguns partidos políticos concordaram com aquela censura, e se em 2017 simpatizavam com o que foi um verdadeiro ataque à democracia, hoje reclamam da censura que o atual governo vem impondo.

É interessante pensar que se hoje está tão em voga a ideia da defesa de direitos LGBTQIA+, algo aliás que conta com a adesão interesseira do Mercado, no caso do Queermuseu, isso não ocorreu. O Santander, banco privado proprietário do Santander Cultural, ficou do lado dos discursos de ódio, moralistas e hipócritas, e cedeu. Isso faz acender um alerta para os limites da inclusão social a partir do Capital!

Somos sabedores de que estas questões estarão em disputa por muito tempo, precisamos combinar nossas ações com outros setores que hoje sofrem com constantes ataques. Hoje temos parlamentares LGBTQIA+ ocupando espaços dentro do Poder Legislativo, algo que tem significado político fundamental na disputa ideológica. Espaços antes reservados para homens brancos e heterossexuais, que detinham ali o monopólio e o domínio exclusivo do poder, agora são também ocupados por corpos LGBTQIA+, mulheres, pessoas comprometidas com o estado democrático. No campo da Cultura, música, cinema, artes plásticas, literatura e teatro, a população LGBTQIA+ vem se fazendo presente de forma consistente e politizada. Novas e novos artistas se destacam pela qualidade de suas obras, e através delas, apontam para uma disputa simbólica e real de poder na sociedade brasileira.

Mas esse fato, infelizmente, não foi isolado. A partir daí, ampliou-se um processo de censura que se espraiou pelo país com mais intensidade, e não foram poucas as peças de teatro, exposições, filmes e projetos culturais que sofreram (e vêm sofrendo) ataques sistemáticos de grupos e setores conservadores, desferidos não somente nas redes sociais, mas também em programas de televisão e rádio, em jornais, e através de projetos de leis. Em contrapartida, o Movimento Social vem reagindo a esses ataques.

Com a decisão do Santander de fechar o Queermuseu, o Nuances entrou com uma representação junto ao Ministério Público Federal pedindo a reabertura da exposição, que teve consequências. Como o Santander negou-se a reabrir a exposição, foi condenado pagar uma multa, cujo valor posteriormente foi a fonte de financiamento de um edital público para premiar projetos culturais e educativos.

O projeto proposto pelo Nuances, “Nuances, 30 anos em exposição: nosso Queermuseu é na rua”, foi contemplado, entre vários outros. O carro chefe do projeto foi uma exposição sobre a vida e obra da Nêga Lú, em lugares abertos de Porto Alegre e onde ela frequentava quando viva.

Lú era uma figura que tinha na arte um dos pilares de sua existência, e trouxe em sua história de vida muitos questionamentos sobre cultura, gênero, raça, sexualidade. Seguindo a mesma estratégia de ocupação do espaço público, fizemos um grafite expressivo com a imagem da Nêga Lú na parede da loja Profana, no coração do bairro Cidade Baixa. Já na parede do Bar Ocidente, local importante para a cultura de Porto Alegre localizado no Bomfim, grudamos um mosaico de azulejos com a efígie da Nêga Lú.

A escolha de homenagear Nêga Lú tem vários significados, por considerarmos a importância de suas raízes, a ousadia que ela trazia inscrita no seu corpo, seus gestos, sem dúvida na sua voz profunda, e principalmente por sua expressão transgressora. Nêga Lú era de mundos e submundos, e deixou um legado que nos dias de hoje se torna ainda mais significativo, uma herança que nos possibilita pensar sobre o poder de transformação que podemos exercer ao questionar a ordem moralista que se intensificou no atual cenário político.

O projeto comemorativo aos 30 anos do Nuances foi realizado em parceria com a Museologia da UFRGS. As exposições para registrar a vida da Nêga Lú se deram também na Lancheria do Parque, no Bar Plano A (vizinho à antiga casa da Lú, no bairro Menino Deus) e no Venezianos Pub, local de resistência LGBTQIA+ localizado na Travessa dos Venezianos (por sua vez, rua de referência para o povo negro da cidade).

A exemplo do que fez por ocasião do Queermuseu, o Nuances, através de representações junto ao MPF, denunciou o Banco do Brasil por ter censurado uma propaganda em que aparecia uma trans, e processou o apresentador Sikêra Jr. por ter proferido um discurso lgtbfóbico que em seu programa televisivo, representação exigindo que a população LGBTQIA+ fosse comtemplada no senso do IBGE, entre outras.

A ocupação de espaços institucionais tem uma relevância muito importante para afirmação e reconhecimento da população LGBTQIA+,mas para o Nuances, as ruas e espaços não convencionais traduzem bem o que o Nuances pensa sobre arte, cultura e seus significados.

(*) Militante do Nuances

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 


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