Opinião
|
22 de março de 2022
|
13:52

Riquixá (por Wilson Ramos Filho)

Foto: Guilherme Santos/Sul21
Foto: Guilherme Santos/Sul21

Wilson Ramos Filho (Xixo) (*)

Nas fotos de meus avós maternos que moravam em Shangai dos anos 40 (Ernest Van Steen, engenheiro belga chegado da Alemanha para instalar os telefones em Florianópolis, casado com Célia Wendhausen, pais da Janette e da Edla, transferido para a planejar a telefonia na China) incomodava-me ver o chinezinho, franzino, puxando o riquixá com o roliço casal sorridente em elegantes trajes ocidentais.

A chegada da grande marcha de Mao às proximidades de Shangai no final da década teve como consequência a transferência do casal para o Cairo, sempre pela Siemens. Curiosamente mesmo no Egito lembro de ter visto fotografias amareladas e desgastadas com o Ernest sobre algo que me parecia um oriental riquixá, também com tração humana. Ou desumana. O trabalho nas colônias inglesas valia muito pouco.

Anos mais tarde, lembrando-me dessas fotos recusei-me a andar em uma espécie de bicicleta em que suarentos latino-americanos carregam abestados turistas em um sofá para duas pessoas, dentro do Central Park em Nova York.

Hoje a utilização da tração humana para carregar lanches, bebidas ou comida encontra-se terrivelmente normalizada. E também em motos ou automóveis.

Contam-se em centenas ou milhares as pessoas que, nas maiores cidades brasileiras, principalmente depois do golpe de 2016, desperdiçam suas vidas como entregadores ou carregadores vinculados a plataformas informatizadas. São os modernos condutores de riquixás, dirigindo seus próprios veículos para aplicativos como Uber ou 99, conduzindo motocicletas de entrega, pedalando ou caminhando com enormes mochilas cúbicas térmicas, à vista de todos, sem causar qualquer constrangimento.

Obviamente, essa normalização da exploração do trabalho humano alheio, em tais condições desumanas, deveria nos incomodar e despertar em nós imediata solidariedade. Mas nem sempre é assim. Nem mesmo entre os prestadores de serviços em situação de vulnerabilidade social.

Chegam-nos informações sobre a existência de aprofundados estudos científicos dedicados a tentar entender de que forma parte significativa desses trabalhadores super precarizados, hiperexplorados, sem direitos ou garantias, têm suas subjetividades capturadas pelo ideário da direita e da extrema-direita no Brasil. É desconcertante.

Desde antes de 1917 sabemos que não bastam condições sub-humanas de trabalho para gerar a revolução. Também sabemos que mesmo havendo as chamadas condições objetivas, também não basta que estas sejam acompanhadas das adequadas condições subjetivas pelas quais os trabalhadores explorados percebam a exploração, a constatem, tenham a consciência (de classe) de que são injustamente explorados. Se bastasse a confluência das condições objetivas com as condições subjetivas o capitalismo já teria deixado de existir há muito tempo, pelo menos nas democracias ocidentais mais consolidadas.

Para que haja a insurgência contra a exploração, contra a maneira capitalista de existir em sociedade, não basta haver condições sub-humanas de trabalho e a consciência desta iniquidade. Os processos de transformação da sociedade só se desenvolvem quando a exploração (condição objetiva) e a consciência da injustiça inerente ao capitalismo (condição subjetiva) se tornam insuportáveis, intoleráveis, inaceitáveis.

O que intranquiliza parte dos estudiosos destas novas formas de exploração da mão-de-obra, nessas novas relações de trabalho intermediadas por impessoais plataformas informatizadas, reside na apreciação subjetiva de boa parte desses modernos carregadores de riquixás uberizados e demais «trabalhadores por aplicativos» de que seriam «empreendedores», livres para escolher quando trabalhar e como trabalhar para viver.

Como se isso não fosse já particularmente intrigante (e entristecedor) há vários estudos a demonstrar que muitos destes superexplorados, hiperprecarizados, defendem essa maneira de existir em sociedade que os explora. São os «miseráveis de direita», que defendem o sistema ultraliberal valorizador do individualismo e da meritocracia.

As pesquisas empíricas ainda estão no início. É cedo para conclusões que aparentem ser definitivas. Mas é inegável o sequestro da subjetividade de parte dos trabalhadores em plataformas, como o uber, que se tornaram fascistas sem perceber, que defendem inclusive a exploração a que são submetidos, que rejeitam o ideário igualitário, solidário, das distintas denominações de esquerda na política e nos movimentos sociais. A simpatia relação a esta parcela dos (pos)modernos carregadores de riquixás, que defendem o humanamente indefensável, torna-se assim cada vez menos automática e intuitiva. Lamentável.

(*) Wilson Ramos Filho (Xixo), professor na UFPR, preside o Instituto Defesa da Classe Trabalhadora.

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora