Opinião
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22 de março de 2022
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12:28

Memória e verdade em ‘Mães Paralelas’ (por Coluna da APPOA)

Cena de
Cena de "Mães Paralelas" (Divulgação)

Gerson Smiech Pinho (*)

Figura lendária da antiga Grécia, Antígona foi retratada em uma das mais belas e impactantes tragédias escritas por Sófocles. A narrativa inicia com a reivindicação da heroína de que seu irmão Polinices recebesse sepultamento digno, como seria de direito a qualquer mortal. Tal pedido surge como consequência do decreto de Creonte, que recém havia assumido o trono e ordenado que o corpo do morto, considerado um traidor por atentar contra a própria cidade, ficasse insepulto e entregue às aves carniceiras. O texto da tragédia se desenrola na medida em que Antígona desafia a ordem do governante em nome do direito de que as honras fúnebres fossem prestadas a seu irmão.

O itinerário de Antígona nos faz lembrar o quanto o respeito à memória dos mortos e a importância das cerimônias relativas à morte estão presentes nos mais diversos lugares, culturas e épocas, ao longo de toda a história da humanidade. Por esta razão, não é raro que o conflito central que estrutura aquela tragédia retorne sempre que, por alguma razão, as tradições em relação aos mortos e antepassados apareçam rompidos, seja dentro ou fora do campo ficcional.

É com base nesse tema que se constrói um dos principais fios narrativos do último filme de Pedro Almodóvar, “Mães Paralelas”. Logo no início da narrativa somos apresentados a Janis, personagem que lida com entraves para executar uma escavação para reaver os restos mortais de seu bisavô, desaparecido na Guerra Civil Espanhola, depois da qual se seguiram algumas décadas de ditadura. Nessa direção, um dos diálogos mais pungentes e tocantes da película acontece no momento em que Janis declara energicamente à outra protagonista, Ana, que é necessário saber que no país em que moram mais de 100 mil pessoas encontram-se desaparecidas, enterradas em valas, e que seus netos e bisnetos desejavam desenterrar seus restos mortais para dar a eles um enterro digno. Conclui dizendo que “até que se faça isso, a guerra não terá acabado”.

Almodóvar explora este período sangrento da história mais ou menos recente de seu país em contiguidade com a trama tecida entre Janis e Ana e que tem como eixo a maternidade. Os caminhos trilhados pelas duas protagonistas se cruzam com a memória coletiva do país em uma insistente busca pela verdade – tanto na vida pessoal de cada uma delas quanto no nível da coletividade – verdade que insiste e persiste ainda que se tente silenciá-la. No cruzamento desses diferentes níveis da narrativa, as gerações passadas se enredam com o presente e com o nascimento de quem irá compor as gerações que ainda estão por vir. O filme demonstra de forma exemplar como a história pessoal é atravessada pela história coletiva e de como nosso cotidiano mais banal e ordinário é posto em marcha pelo que nos antecede e de como constrói o que ainda está por vir.

Se o perfil genético é largamente utilizado como via de identificação das relações de parentesco ao longo da trama, a certa altura, os pequenos objetos que habitam o dia-a-dia ganham um destaque especial como representantes dos laços com os antepassados – como um chocalho, um olho de vidro ou uma aliança. Esse é um dos muitos momentos em que o filme emociona e comove.

Para quem assiste “Mães paralelas” desde o Brasil, o efeito identificatório é imediato. Afinal de contas, em nossa história recente também nos encontramos com desaparecidos e mortos cujos corpos foram subtraídos de seus familiares. O impedimento dos ritos fúnebres, seja por privar o acesso ao corpo do morto, seja por ocultar ou deturpar as circunstâncias da morte, representa o desprezo pela história dos antepassados e pelos laços que constituem o tecido social. Afinal de contas, um dos requisitos para a civilização é a possibilidade de que o ciclo da vida, em seus diversos tempos desde o nascimento até a morte, possa ser inscrito na cultura através dos ritos e tradições que lhes são próprios. Prestar homenagem àqueles que partiram é um modo de fazer com que sua existência se perpetue em nossa memória, tanto individual quanto coletiva. Nessa direção, “Mães paralelas” não deixa de ser um valioso tributo ao resgate à memória e à busca pela verdade, termos tão necessários nos tempos em que vivemos.

(*) Psicanalista, membro da APPOA e do Centro Lydia Coriat

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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