Opinião
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1 de março de 2022
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07:30

Carnaval em chamas (Coluna da APPOA)

"Temos que reconhecer nossa dificuldade de aceitar as diferenças". (Pixabay)

Robson de Freitas Pereira (*)

Liberdade, liberdade/ abre as asas sobre nós/
E que o sol da igualdade/seja sempre a nossa voz

Imperatriz Leopoldinense [1]

A pandemia ainda não foi embora e seus efeitos continuam a se fazer sentir. Um deles: queimou o carnaval. Diversas cidades, grandes e pequenas, cancelaram os desfiles de blocos, escolas de samba, trios elétricos e maracatus. Sim, sabemos que muita gente vai para as ruas festejar, desafiando os riscos de contaminação, fazendo com que estejamos na expectativa dos resultados- afinal, ano passado a situação piorou depois do carnaval. Graças à vacinação massiva, esperamos vivamente que os efeitos não sejam tão catastróficos. Já temos óbitos e infectados mais do que suficientes.

Não bastasse esta peste moderna, o carnaval também ficou marcado por outras “chamas”: o espectro da guerra total mais uma vez nos ronda. Da longínqua Ucrânia os ecos da geopolítica mundial nos alcançam imediatamente. A informação online, muitas vezes em tempo real, reproduz os diversos discursos que buscam justificar suas ações bélicas, por mais absurdos que possam ser. Neste embate, como Mark Twain escreveu, a primeira vítima (além dos civis) é a verdade. Dependendo da fonte, da agência de notícias buscada, o relato pode ser completamente diferente.  O “urso mostra suas garras” ao ter suas fronteiras ameaçadas pela sanha expansionista do império.

Afinal Otan/Eua desde a queda da União Soviética, em 1991, conseguiram que vários países da antiga USSR alinhassem com suas fileiras. Vladimir Putin quer restabelecer o império tzarista, porém está dando uma estocada no “império ianque decadente”. O presidente russo, há mais de vinte anos no poder, sempre reconduzido por eleições democráticas, alega estar em defesa da liberdade ao atacar históricos grupos neonazistas ucranianos (vide a segunda guerra mundial). Por sua vez, Volodymyr Zelenski, atual presidente da Ucrania, reclama de estar abandonado à própria sorte pelas nações ocidentais, leia-se ONU, União Europeia e, principalmente, OTAN que lhe prometeu suporte. Ato contínuo, convocou os reservistas civis para defenderem o país. As indústrias de armamentos norte-americana e soviética agradecem penhoradas; seus lobbys em prol de mais uma guerra estão dando certo. Os negócios estão quentes. Afinal, armas, drogas e fármacos estão entre os mais lucrativos – e perigosos, do mundo atual.

Vamos esclarecer que mesmo escrevendo num domingo de carnaval, ninguém, em sã consciência, se diria “bela alma” a procurar pela paz mundial ou a verdade universal nesta conjuntura global.  Entre outros, Freud e Hobbes nos ensinaram que algumas condições estruturais estão longe de serem superadas; temos que lidar com as impossibilidades. 

O problema, evidentemente, é de uma complexidade que ultrapassa qualquer tentativa de síntese, principalmente maniqueístas. Porém, nos chama atenção a persistência deste impulso, nada sutil, de transformar fatos, acontecimentos que envolvem milhões de vidas civis em um trivial gre-nal (ou fla-flu), seja pandemia, guerra civil ou uma eleição. A vida fica banalizada e muito precária para os mais fracos. Segundo a ACNUR – Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, até este momento mais de 500 mil ucranianos saíram do país. Muitos deles, tendo como destino um campo de refugiados internacional. 

Aqui em nosso território, a quarta-feira de cinzas de 2022 aponta para um ano de eleições gerais; nossa “guerra particular” mais próxima, seguindo a frase atribuída a von Clausewitz  de que a guerra é a continuação da política por outros meios. No Brasil, para que isto não seja um eufemismo, levando em conta nossa história cultural e psíquica, temos que cuidar e trabalhar muito para que a banalização da violência não se dissemine mais ainda. Onde seja efetivamente possível, metaforizar, insistir no valor da palavra como um dispositivo transformador; fazendo com o que acontece à nossa volta seja da nossa conta.      

Por isto, citamos o samba enredo da Imperatriz que como vários outros ao longo da história do samba e do carnaval possibilitou um avanço político com a arte. Ele ultrapassou sua finalidade inicial; cantar o centenário de proclamação da república em 1989. De simples samba enredo exaltação, transformou-se num hino popular de brado pela liberdade em seu mais amplo sentido – político, cultural, humano. Uma arma poética (para lembrar Thiago de Melo) que pode ser cantado a qualquer momento, qualquer lugar onde haja a ameaça de um incêndio. Seja de nossa casa, nossos livros, nosso país. Trate-se de uma inundação causada pelas chuvas de verão ou da invasão de uma comunidade que luta por sua liberdade contra a milícia, o tráfico ou os representantes do Estado que não honram sua função.

A casa queima, um país queima, a chama que cega transformou-se: “mudou de forma e natureza, fez-se digital, invisível e fria, mas justamente por isso está ainda mais próxima, está ao nosso lado e nos circunda a todo instante.” [2]    

Como combater, quais as armas adequadas nestes tempos de tecnologia, hegemonia financeira e algoritmos? Sabemos que as soluções são contingentes, afinal só a morte é condição definitiva. Mas, por isto mesmo apostamos na possibilidade de mudança. As pessoas podem mudar de posição, admitir um erro não é pecado, ou humilhação. Uma tarefa urgente: temos que reconhecer nossa dificuldade de aceitar as diferenças. Aprendemos nos últimos anos, às vezes com um custo altíssimo, que as pequenas diferenças podem levar a conflitos fratricidas. Também aprendemos que o mundo não se resume a nossa vizinhança, ou aos que pensam exatamente igual ou torcem pelo mesmo time. Afinal, ninguém é perfeito, dizem os amigos. “é pau/é pedra” mas não é o fim do caminho; “são as águas de março fechando o verão/e a promessa de vida no teu coração”.  

Notas

[1] Samba-enredo da G.R.E.S. Imperatriz Leopoldinense, de 1989. Compositores: Jurandir / Niltinho Tristeza / Preto Jóia / Vicentinho.

[2] “Quando a casa queima- sobre o dialeto do pensamento”. Giorgio Agamben. Ed. Âyiné.2021.

(*) Robson de Freitas Pereira é psicanalista; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). Publicou, entre outros: O divã e a tela – cinema e psicanálise (Porto Alegre: Artes & Ofícios, 2011) e Sargento Pimenta forever (Porto Alegre: Libretos, 2007).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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