Opinião
|
29 de março de 2022
|
10:37

A Ucrânia é aqui: Porto Alegre, zona sul (por Raquel da Silva Silveira e Afroconto e Outros Contos)

Presidente do CAU/RS diz haver avanço no debate urbanístico, embora obras de melhorias ainda costumem acontecer longe das áreas periféricas. Foto: Luciano Lanes/PMPA
Presidente do CAU/RS diz haver avanço no debate urbanístico, embora obras de melhorias ainda costumem acontecer longe das áreas periféricas. Foto: Luciano Lanes/PMPA

Raquel da Silva Silveira (*)

A guerra é sempre um fato histórico terrível. E conforme a amplitude da cobertura midiática, mais ela estará nas nossas casas, nas nossas redes sociais. Os afetos então se exacerbam e ficamos chocados e chocadas com o horror das bombas e das vidas perdidas. Principalmente se essa guerra pode afetar o mundo, como a guerra da Ucrânia. Mas e como lidamos com a guerra permanente em que vive grande parcela da população brasileira?

No dia 24 de março de 2022, numa atividade de extensão universitária na Vila Cruzeiro, em Porto Alegre, escutamos de duas professoras negras de uma escola pública de ensino fundamental que a comunidade estava muito assustada, pois um novo conflito armado assola o cotidiano do bairro. O toque de recolher é imposto pelos traficantes em guerra. O pátio interno da frente da escola não é mais seguro para as crianças brincarem. As ruas no entorno da escola são rotas de fuga em que perseguições e tiroteios estão presentes. A entrada da polícia também assusta a comunidade, pois a história vivida guarda memórias da violência racista sempre experimentada por esse bairro negro de Porto Alegre.

No fim da reunião, em que estávamos organizando a retomada da atividade de contação de histórias para a escola, uma das professoras pede que o nosso coletivo extensionista seja comunicado do momento vivido no bairro. Alerta para tomarmos cuidado, pois nem o Uber está chegando ali, e que caminhar na rua pode ser perigoso.

À tarde paramos para conversar sobre as informações recebidas. A docente universitária, professora branca de psicologia, havia sentido o medo e a tristeza das colegas da escola pública, mas aqueles fatos ainda eram apenas relatos, escutados apenas uma vez. Não tinha a mesma recorrência que a guerra na Ucrânia, não tinha as mesmas imagens urgentes invadindo o seu imaginário e coração.

Contudo, na reunião virtual do projeto, uma das estudantes de psicologia e bolsista, uma jovem mulher negra, mãe de um menino negro de 4 anos, traz a sua preocupação também. Ela mora naquela comunidade. Os tiros, o toque de recolher, a violência policial, tudo isso faz parte da sua vida. Um dia antes da reunião, um amigo do seu filho, um menino de 3 anos, foi alvejado por um tiro do conflito. Estava no hospital ainda, e ninguém sabia notícias.

Ela nos conta do seu receio como mãe, da tristeza de não poder mais deixar seu filho andar na rua, alguns passos a sua frente, pois a guerra pode emergir de qualquer lugar. Agora nossos afetos se alteram de fato. Só nós duas sabíamos do que estava acontecendo, pois o noticiário não fala desse conflito armado, que infelizmente, não é o único nas periferias negras das grandes cidades.

Sim, a guerra é sempre um acontecimento terrível, é o avesso da política, pois o conflito não é tolerado, e a eliminação do outro é o caminho escolhido. O racismo brasileiro tem perpetuado o genocídio da população negra, já tão denunciado por Abdias Nascimento, Lélia Gonzáles, Beatriz Nascimento, Cidinha da Silva, Sueli Carneiro, e tantos outros(as) intelectuais negros(as) brasileiros(as). O silêncio sobre as guerras que assolam as nossas periferias é gravíssimo.

Do lado da universidade, precisamos afirmar a importância das cotas raciais. A violenta experiência vivida pela nossa estudante, negra e periférica, tensiona a obsoleta e desigual noção “universal” de sujeito do conhecimento.

(*) Professora de Psicologia do Instituto de Psicologia da UFRGS e coletivo de extensão universitária

***

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora