Opinião
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6 de março de 2022
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21:30

A guerra e as fantasias liberais (por André Moreira Cunha e Andrés Ferrari)

Escalada do conflito militar na Ucrânia ameaça estabilidade de toda a Europa. (Foto: Google Maps)
Escalada do conflito militar na Ucrânia ameaça estabilidade de toda a Europa. (Foto: Google Maps)

André Moreira Cunha e Andrés Ferrari (*)

A desglobalização e a guerra europeia

Nos últimos quinze anos, foi possível testemunhar-se o desmonte das fantasias liberais em torno da construção de uma ordem internacional multilateral aberta, fundada em valores supostamente universais e democráticos e consubstanciada no direito internacional. A realidade cada vez mais complexa da disputa de poder entre os Estados Unidos (EUA), seus aliados, e as potências emergentes (ou reemergentes), particularmente a China e a Rússia, teima em não caber nas fronteiras limitadas de análises políticas e econômicas autocentradas em modelos teóricos abstratos e ideologias diversas.

Com a invasão da Rússia na Ucrânia, os EUA e seus aliados não hesitaram em abandonar, uma vez mais, os pruídos liberais e, assim, as liberdades plenas de mercado. As sanções econômicas contra a Rússia revelam tal disposição: a retenção de ativos de empresas, de indivíduos ricos e do governo, a pretexto de não financiar a guerra, vem atrelado à retirada dos principais bancos russos da maior e mais ampla rede de pagamentos globais: o SWIFT. A velha diplomacia financeira tornou-se uma guerra financeira, de modo que o banco central russo está sem acesso a metade de suas reservas internacionais, estimadas em US$ 613 bilhões. E as pessoas comuns já não podem usar seus cartões de crédito Visa e Mastercard.

Para a “The Economist”, as sanções em tela são as mais duras já estabelecidas pelo “Ocidente” e representam um risco real de desconstituir o próprio sistema multilateral aberto que se pretendia salvar. E, como é de praxe, a hipocrisia e a seletividade imperam. Por exemplo, nem todos os bancos russos foram excluídos do SWIFT. O Sberbank segue, pelo menos por enquanto, no sistema internacional de pagamentos, pois é o banco responsável pelas transferências associadas ao setor de energia. Não há guerra sem custos, mas para minimizá-los, tomou-se a precaução de manter aberto o canal de comercialização de alimentos e energia, principalmente o gás, que é essencial para vários países europeus.

O gás russo e o seu petróleo cru atendem a cerca de 40% da demanda europeia. Em alguns casos, como a Alemanha, o motor industrial da União Europeia, tal dependência supera aos 60% do consumo aparente. No último ano, os preços da energia não apenas dispararam em toda a região, como se tornaram extremamente voláteis. O preço do gás já está acima de 210 euros por Megawatt-hora, dez vezes mais do os valores observados há um ano. Em resposta às sanções impostas pelo Ocidente, a Rússia diminuiu a sua oferta regular de gás. Seu olhar está se direcionando para o mercado oriental, mais precisamente para a China, sua principal parceria estratégica no momento. 

O establishment estadunidense há muito não esconde que China e Rússia são seus principais adversários estratégicos. Se a China é um ator grande demais para ser ignorado em termos econômicos, com seu produto interno bruto (PIB) a valores correntes de mercado respondendo por 17% do total global, e suas exportações, por mais de 11%, a Rússia é relativamente pequena: menos de 2% do PIB e do comércio de bens e serviços. Ainda assim, há determinados insumos e produtos finais, os quais são vitais para diversas cadeias de produção ao redor do mundo, que serão afetados pela guerra e pelas sanções, dentre os quais: titânio (usado em aviões), paládio (usado para fazer conversores catalíticos), néon (da Ucrânia, usado para fazer semicondutores) e trigo (Rússia e Ucrânia respondem por ¼ das exportações). 

A Economist Intelligence Unit estima que os países em guerra garantem a produção de 12% das calorias/dia consumidas no mundo e que se originam em cereais e grãos oleaginosos. As pressões altistas de preços, que já assustavam antes da guerra, tornaram-se ainda mais preocupantes. Por isso mesmo, o bloqueio comercial à Rússia é seletivo e parcial. Bens e serviços ordinários, que não representam transferência potencial de tecnologia ou mesmo que possam alimentar o esforço de guerra, ainda podem ser vendidos à Rússia, o que permite a contrapartida em termos de exportações russas daquelas commodities agrícolas e energéticas. Evidentemente, se a escalada de confrontos se ampliar, mesmo isto poderá ser atingido. Ainda assim, cresce, dia a dia, a lista de empresas que, sob a pressão de seus consumidores ocidentais, decidiram encerrar suas operações na Rússia ou parar (total ou parcialmente) de realizar vendas naquele mercado, tais como: Apple, British Petroleum, Shell, Equinor, Nike, Microsoft, Hèrmes, Samsumg, Airbnb, IKEA, Volkswagen, Mercedes-Benz, Spotyfi, SAP, Netflix, Boeing, Dell, Visa, Mastercard etc.  

Para a The Economist, o uso de sanções econômicas tem resultados pouco claros em termos políticos. Já os seus custos não são negligenciáveis. Em 2020, por exemplo, os bancos internacionais gastaram US$ 50 bilhões somente para monitorar indivíduos e empresas sob algum tipo de restrição. Estas cresceram em dez vezes nos anos 2000, atingindo 10 mil pessoas físicas ou jurídicas em 2021. Guerras e conflitos não foram encerrados, tampouco as potências ocidentais impediram a ascensão chinesa e o fortalecimento do poder russo por meio da política ativa de restrições às transferências de tecnologia e recursos estratégicos.

Em artigo recente na Foreign Policy, Eric Sayers e Ivan Kanapathy, da Beacon Global Strategies, argumentam que a partir do governo Trump, e com renovada intensidade na administração Biden, as restrições às transferências de ativos, bens e serviços estratégicos (desde a perspectiva estadunidense) estão moldando uma nova realidade econômica global, na qual, em nome da segurança, os governos interferirão mais nos negócios privados. Os relatórios anuais da Comissão de Economia e Segurança que trata das relações bilaterais entre EUA e China mostram como todos os instrumentos de poder econômico e político estão sendo mobilizados para reduzir a capacidade de empresas chinesas se utilizarem dos mercados financeiros, tecnologias e recursos humanos estadunidenses. 

A ilusão liberal das liberdades individuais e do livre comércio sempre alimentou a defesa de reformas que, em última instância, só aprofundaram as condições assimétricas para a concorrência nos mercados globais. Todavia, quando esta mesma concorrência ameaça as posições das empresas e demais interesses dos poderes ocidentais, como no exemplo recente da ascensão chinesa à condição de potência global, os EUA e seus aliados se mostram dispostos a retirar o véu que tanto ilude os incautos. 

Os EUA se tornaram a maior economia do mundo e uma potência global no rastro das quase duzentas guerras e intervenções militares externas realizadas desde 1798, conforme contabiliza o serviço de estudos do Congresso Nacional do país. Um novo conflito a cada 15 meses. Este levantamento não inclui outras formas de ação, como o apoio a golpes militares e a desestabilização do ambiente político e institucional de outras nações soberanas, as quais também podem ser contabilizados em dezenas, tanto no período da Guerra Fria, como depois dela. Tampouco inclui as guerras internas contras as distintas populações autóctones ou a violência do período da escravidão e discriminação racial que se seguiu à abolição. Não é exatamente trivial construir e manter um poder global

Claro está que as guerras – econômicas, militares, híbridas etc. – são instrumentos centrais para a disputa do poder global. Na perspectiva das elites ocidentais, elas só se tornam condenáveis quando originadas em “poderes revisionistas”, termo cunhado para designar países que estão dispostos a contestar a ordem internacional estabelecida pelos países europeus e pelos EUA.

Para reorganizar a produção mundial, explorar vantagens locacionais que reduzissem custos diversos, e obter acesso aos mercados consumidores dos países emergentes e em desenvolvimento recentemente integrados, de forma mais estreita, aos fluxos globais de mercadorias, serviços e capitais, os líderes ocidentais empreenderam um enorme esforço para desmontar barreiras regulatórias as mais diversas. Isso se deu com redobrada intensidade após o colapso da União Soviética e de sua área de influência, o qual permitiu reincorporar o Leste Europeu e a maior parte da Ásia Central no capitalismo hiperglobalizado. Ao mesmo tempo, China, Índia, os países do Sul e do Sudeste da Ásia e África, experimentaram processos equivalentes de transformações institucionais que, de fato, os integraram às finanças e ao comércio da economia global.

Em termos quantitativos, as mudanças na distribuição da produção foram marcantes: nos anos 1970, as economias avançadas do G7 respondiam, em média, por 56% da produção global de bens industriais (setores extrativo, manufatureiro e de utilidades públicas) e 40% das exportações de bens e serviços. Ao agregar os demais países de alta renda, tais proporções sobem para 70% e 60%. Já na década de 2010, o G7 passou a deter 37% da produção e do comércio globais, ao passo que o conjunto dos países de alta renda atingiam 45% (produção) e 50% (exportações). Assim, as demais economias do mundo ganharam espaço relativo por meio da liberalização dos fluxos globais de fatores de produção, mercadorias e serviços, em especial as nações “ganhadoras” do Leste Asiático

Os indicadores de produção industrial e de comércio internacional revelam que, nos anos 1970, a antiga URSS (5,3% e n.d.), a China (1,1% e 0,4%) e a Índia (0,7% e 0,4%), bem como as demais economias de seus entornos estratégicos, tinham poucos vínculos com a economia global. Já na média da década de 2010, a China se responsável por ¼ do valor adicionado na agricultura e indústria em termos internacionais, bem passou a liderar as exportações de bens e serviços (11%). A Federação Russa reemergiu dos escombros da falência da URSS, com uma economia menor em termos internacionais, com 2% da produção industrial e do comércio de bens e serviços. Já a Índia, passou a ter, respectivamente, 2,7% e 2,1% daqueles agregados. Outros países também avançaram relativamente, especialmente os do Leste Asiático. Já as economias do Leste Europeu lograram se integrar estreitamente com seus parceiros europeus.  

Estes dados ilustram o desafio que se coloca para os estrategistas das “democracias ocidentais”: como desconectar seus inimigos dos fluxos globais de produção e de comércio sem infligir danos irreparáveis sobre as suas próprias sociedades e economias. Isto porque, a interpenetração de capitais e de tecnologias tornou-se a base da própria globalização. A guerra comercial e tecnológica dos EUA com respeito à China e as sanções atuais à Rússia podem ser vistos como ensaios para a reconstrução de uma economia global mais fragmentada e sujeita aos choques securitários e às decisões políticas de viés nacionalista. Uma economia que em nada lembra as ilusões liberais proclamadas nos últimos quarenta anos.

No plano político, a crença de que a ampla integração econômica global se traduziria em maior bem-estar social começou a ser questionada já antes da Crise Financeira Global (CFG, 2007-2009). O mainstream acadêmico e oficial passou a admitir que, em sua dimensão financeira, a liberdade irrestrita para os capitais privados teria produzido ondas de expansão e contração nas economias recipientes de recursos externos, com ganhos médios de longo prazo desprezíveis. Dito de outra forma, a liberalização financeira externa não produziu crescimento econômico com estabilidade nos países emergentes e em desenvolvimento. Pelo contrário, gerou mais crises financeiras e piora na distribuição de renda.  

Mais recentemente, com o advento da pandemia e dos conflitos geopolíticos envolvendo os EUA e seus rivais, particularmente China e Rússia, ganhou corpo o ceticismo em torno da liberalização comercial e da possibilidade de plena liberdade para a transferência de tecnologias e recursos financeiros entre as democracias ocidentais e os países autocráticos revisionistas. Questiona-se se ainda é conveniente, em nome de supostos ganhos de eficiência econômica, abrir mão da segurança energética, alimentar, sanitária, tecnológica e assim por dia. As diversas formas de nacionalismo econômico e de protecionismo voltaram à ordem do dia. 

A primeira guerra europeia do século XXI trouxe de volta a este palco regional a dura realidade da guerra, a qual faz parte do cotidiano de milhões de pessoas em regiões periféricas conflagradas – não raramente, devido aos avanços das grandes potências ocidentais sobre suas respectivas soberanias nacionais. Somente a “guerra global contra o terror” levada a cabo pelos EUA, a partir de outubro de 2001, gerou o seguinte custo humano, de acordo com levantamento da Brown University: 929 mil mortos pela violência direta da guerra e 38 milhões de pessoas que perderam as suas casas, no maior deslocamento humano gerado por conflitos desde a II Guerra Mundial. 

A despeito da fúria devastadora da máquina de guerra estadunidense, os especialistas ocidentais seguiram repetindo o mantra de que a globalização traria a paz perpétua prometida por Kant. Em 2004, o sociólogo Erich Weede, professor emérito da Universidade de Bonn, afirmava que “… os críticos da globalização se esquecem que o livre comércio estimula a prosperidade e … evita guerras”. A literatura econômica convencional e os divulgadores da ideologia libertária não se cansaram de reforçar tal conceito, o qual fora particularmente popular nas elites financeiras e políticas antes da Primeira Guerra Mundial, conforme nos mostra o magistral livro do historiador Peter Clarke (The Locomotive of War).

As cenas de destruição física das cidades ucranianas e a fuga em massa de seus habitantes potencializam, na Europa, o temor de que o conflito em curso se alastre para outros países ou envolva o uso de armas de destruição em massa. A ameaça nuclear voltou [1] a ter visibilidade no centro do tabuleiro político global, uma realidade que parecia ter ficado no passado. Pelo menos para quem comprava a valor de face as requentadas promessas liberais de que a integração econômica reduziria as chances de que guerras sistêmicas voltassem a ocorrer. A chegada da Paz Perpétua foi anunciada tantas vezes pelos intelectuais e políticos liberais ocidentais, especialmente depois da queda da União Soviética e, assim, do “fim da história”, quanto bombas foram lançadas em países do Oriente Médio e outras regiões periféricas. 

No turbulento século XXI, a aceleração no crescimento da renda, em seus primeiros anos, sob os auspícios da interdependência complexa entre EUA e China, foi logo interrompida pela CFG. Esta, por sua vez, lançou os países avançados em uma década de estagnação, com desemprego elevado, dívidas (pública e privadas) em alta, deterioração das rendas do trabalho e piora significativa na distribuição da riqueza socialmente produzida. Quando o pior parecia ter ficado para trás, a pandemia da Covid-19 criou um ambiente social propício para produzir a segunda contração do produto interno bruto global em menos de duas décadas. 

A recessão global de 2020 foi uma das mais intensas da história e aquela que, de acordo com estimativas do Banco Mundial, envolveu o maior número de países simultaneamente. Para conter os seus efeitos econômicos e sociais, os governos centrais, particularmente nos países de alta renda, adotaram políticas fiscais e creditícias as mais robustas já realizadas em tempos de paz. De acordo com os levantamentos do Fundo Monetário Internacional, nas economias avançadas os gastos públicos adicionais foram da ordem de 12% das respectivas rendas, em média, ao passo que os estímulos creditícios atingiram 11% dos produtos. Nas economias emergentes, tais apoios foram de, respectivamente, 6% e 4%; e nos países em desenvolvimento de baixa renda de 3% e 1%. São valores expressivos e que equivalem a mais do que o dobro dos estímulos necessários para enfrentar a CFG

Por isso mesmo, relação dívida pública/PIB elevou-se significativamente no período em tela: de 33%, em média, no ano de 2007, para 56%, em 2020, nas economias emergentes e em desenvolvimento; e de 82% para 135% nas economias avançadas. Em tempos de crise, a mão visível dos Estados interveio para minimizar os efeitos mais deletérios das crises. É importante lembrar, conforme enfatizamos aqui, que parcela expressiva desta atuação estatal se deu para proteger a renda e o patrimônio dos mais ricos, o que implicou em agudização dos problemas distributivos. A globalização jamais entregou maior crescimento da renda e da produtividade, conforme prometeram os arautos da Escola de Chicago. Em artigos publicados no Sul 21 e no portal da FCE-UFRGS, indicamos que a ilusão do progresso sob a hegemonia neoliberal já não resiste ao escrutínio criterioso das evidências empíricas. 

A nova guerra, se vier a se prolongar e se alastrar para além do palco original na Ucrânia, perspectivas que não podem ser descartadas a priori, colocarão mais pressão sobre os orçamentos públicos e privados. A inflação em alta e a inevitável perda de poder aquisito dos cidadãos médios dos países de alta renda, bem como o aumento da pobreza e da miséria ao redor do mundo, se tornarão parte no novo normal de insegurança global. Quem seguir se orientando pelos mantras libertários e não considerar a importância de garantir a segurança energética, alimentar e tecnológica, bem como preservar ativos estratégicos (recursos naturais, humanos e empresariais) deverá se confrontar com uma realidade cada vez mais adversa. No limite, os tambores da guerra ameaçarão não somente as economias locais e global, mas, também, a própria capacidade de reprodução normal da vida humana em muitas sociedades.

Nota

[1] Em matéria da Financial Times intitulada “West takes Putin’s nuclear weapons threat seriously”, lê-se que: “‘There’s a real possibility Putin could turn to nuclear weapons if he continues to experience military setbacks and sees the diplomatic and political situation crumbling,’ said Caitlin Talmadge, a nuclear policy expert at Georgetown University….. ‘While this might be an attempt to deter the west from imposing new, harsh sanctions on the country’s financial sector or supplying weapons to Ukraine, the move escalates tensions between Russia and the west to an unprecedented level,’ said Andrius Tursa, eastern Europe expert at political risk consultancy Teneo.”

(*)Professores do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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