Opinião
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8 de fevereiro de 2022
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07:11

Portas e limiares (Coluna da APPOA)

Obra de Carlo Scarpa na entrada da Faculdade de Arquitetura, da Universidade de Veneza (Creative Commons 2.0)
Obra de Carlo Scarpa na entrada da Faculdade de Arquitetura, da Universidade de Veneza (Creative Commons 2.0)

Lucia Serrano Pereira (*)

Nas conversas informais, na clínica, no cotidiano de nossa experiência tem retornado constantemente o tema do tempo como isso que se desorientou, de alguma maneira, e que no vaivém do remoto/presencial que se alterna apresenta seus efeitos; mas principalmente o enigma do tempo naquilo em que vai se embaralhando nas continuidades… Quando foi mesmo? Nesse ano que passou ou no primeiro da pandemia? Nos falamos há alguns meses, ou foi no início do ano passado? Já faz tanto tempo? Primeiro encontro depois de dois anos? Ou, já estamos em fevereiro e nem sei como chegou tão rápido… 

Dimensão do tempo mas também de espaço que se vê alterado e que pede, de alguma forma, que as referências e as marcas possam trabalhar com mais contraste. Para que possamos ritmar, nos situar. E com essas impressões e ecos na cabeça encontro um escrito, breve capítulo de A casa queima de Giorgio Agamben, de 2021, intitulado “Portas e limiares”. Na verdade, ao contrário. A leitura de portas e limiares é que permitiu trazer a importância da retomada, como esses ingredientes que vemos depois da coisa feita, como eles são indispensáveis, necessários. 

Começa Agamben trazendo a obra de um artista, Carlos Scarpa, que convidado a realizar o projeto para a entrada da Universidade Iuav de Veneza, nos anos 70, recebe o pedido de que utilizasse neste uma porta. Não era uma qualquer: uma porta de pedra de Ístria (na Croácia) encontrada durante a restauração do Convento dos Telentini, sede da Faculdade de Arquitetura.  Primeiro, se queria que esse portal de mármore fosse colocado como a entrada da faculdade. E Scarpa escolhe então, em seu trabalho, não fazer o uso “normal” de uma porta, e sim deitar essa porta no chão, e deixá-la coberta de água. Não como uma entrada natural mas como peça, reverberando sua função subvertida. Ela fica submersa, cria uma paisagem por debaixo da água. Linda obra, vale a pena visitar o site. 

Colocar na horizontal uma estrutura que tem seu uso mais forte na verticalidade deve ter sido pensado com cuidado, Agamben observa. E então se desdobra  o vôo do autor. Portas. Dois significados diferentes, que o uso corrente mistura. Um deles o de abertura, acesso; o outro de uma estrutura que fecha ou abre.

Diferenças nessas significações, que em geral nem nos ocorre pensar: uma, a passagem como algo que se cruza, se adentra ou se sai, a da primeira vertente; a outra, como estrutura, a porta que serve para separar, que permite ou não a passagem.  Porta-limiar, porta-estrutura. E que em geral se superpõe, vem juntas. Acesso e abertura, por exemplo. É diferente do muro, a porta pode até estar fechada, mas tem a possibilidade do abrir. 

Vem a referência ao mundo clássico, onde a porta poderia ser horizontal, mundo dos vivos ou o Hades dos mortos, por baixo. Passagens arriscadas.

Como algumas  portas literárias: a jovem mulher de Barba Azul tem acesso a todas as portas menos uma, não deve abrir aquela à qual não resiste, onde estão os cadáveres das seis esposas que vieram antes dela. 

“Estamos nos tornando muito pobres em experiências de limiares” frase de Benjamin que me toca, vale muito no trabalho de achar, escolher algumas ferramentas simbólicas que auxiliem a lidar com este nosso momento.

Afirmativa que vem com uma forte reflexão sobre a modernidade, os ritos de passagem que Benjamin observava já totalmente diferentes em sua presença na comparação com as sociedades tradicionais; a função do coletivo que passa a ceder lugar ao individualismo, e todo um desdobramento que não vamos aprofundar aqui, mas sim chamar a atenção sobre um ponto. Agamben alerta que não é tão simples a proposição benjaminiana, que é preciso avançar com as nuances e ir abrindo a complexidade. Temos experiências de limiares que podem ficar, ao contrário, extensas, como por vezes se fala das adolescências.

O que me parece valioso em “portas e limiares” é que isso pode compor uma zona, se pudermos nos aproximar. Zona como área, quase como região. Porta – foris, foras, fora, do latim. Porta enquanto experiência de abrir uma zona de fora, de vazio que ajuda a fazer diferença, e, portanto, abrir o contraste, o intervalo, o desejo, o tempero, que nos inspira e anima. O que é diferente dos circuitos de continuidade que podem automatizar. As zonas de limiares, em Benjamin, lembremos, são os lugares privilegiados de constituição de experiências. Do exercício da singularidade, nós podemos dizer. Leitura de Infância em Berlim, com cada recanto obscuro e prazeiroso, com o não saber, a curiosidade e o assombro, nas frestas da infância. Leitura de Em busca do tempo perdido que esse ano aniversaria e que também compõe limiares surpreendentes nas reviravoltas da irrupção das memórias involuntárias do pequeno Marcel. Do tempo mais próximo de nós,  leitura de Passagem para o Ocidente de Mohsin Hamid e seus portais oníricos e ao mesmo tempo de pesadelo no transito das migrações. 

Portas, portais, limiares. Que nos ajudam no difícil trabalho de encontrar as fendas no excesso de continuidades. Que contribuem, nesses dois anos, também a orientar nossos mapas, a fazer traçados, contornos, a lidar com as descontinuidades que podem ser perturbadoras mas que criam caminhos.

Essa porta deitada na água está ali dando lugar a uma abertura, vai concluindo Agamben, abertura que não leva a nenhum lugar que possa ser determinado, “mas se dirige ao céu” a um puro “ter lugar” que acontece em intimidade com uma zona de fora, de alteridade.

Quando podemos dar tempo e espaço para que a zona dos limiares se desdobre e faça sua função. Não nostalgia de outro tempo, mas poder sublinhar o que nos permite constituir o valioso.

(*) Lucia Serrano Pereira é psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), doutora em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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