Opinião
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7 de fevereiro de 2022
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17:01

O assassinato de Moïse: Nejar, João Cabral e Machado, devastação e redenção (Tarso Genro)

 Foto: Luiza Castro/Sul21
Foto: Luiza Castro/Sul21

Tarso Genro (*)

Na quarta-feira, dia 2 de fevereiro, foi decretada a prisão de três homens envolvidos na morte de Moïse Kabangambe. Imobilizado por um lutador e espancado com – ao menos – 30 pauladas, próximo ao quiosque onde ele prestava serviços na Barra da Tijuca, o jovem congolês foi vítima de um assassinato brutal, de viés nitidamente racista. O episódio, todavia, faz uma síntese mais ampla da impregnação da cultura da violência, derramada sobre a totalidade dos pobres em países de forte tradição escravista como o nosso e que, de repente, transforma a tradição em barbárie no presente, com exemplo trágico de toda uma época. Nossa América do Sul, espanhola e portuguesa, descansou a paz da democracia política em poucos períodos, mas nunca descansou da fome, da opressão de classe e do ódio racial, pois estes foram os modos básicos de composição da parte da América que somos hoje.

Foi um assassinato tão brutal como é o negacionismo assassino de crianças, num universo de má consciencia em que os pobres são irrelevantes para os muitos ricos, estes “proprietários” de celeiros de torturadores, destinados a lhes assegurar a impunidade: seus homens já chegam aos aos Tribunais, depreciando da empatia e da solidariedade humana, exalando a pestilência do fascismo, não se comovendo com nada. A frieza da sua alma – ao mesmo tempo que é a garantia da sua solidão protegida – também é um muro de contenção de pesadelos, pois, na vida real, sabem que rapidamente tudo será absorvido pela dor e pelo silêncio. “Pai contra mãe” de Machado de Assis e “Cemitérios Pernambucanos” de João Cabral de Melo Neto, já nos mostraram estes pilares do escravismo, antigo e contemporâneo, hoje turbinado pelas armas e pelas redes.

Abre fevereiro e recebo do meu amigo e poeta maior, Carlos Nejar, “A República do Pampa”, volume de quatro dos seus melhores livros, onde estão – em alguns relâmpagos do verbo – as pistas de onde vem as mortes dos deserdados da lei e da terra, que o mundo recebeu e ampliou, nos dias de hoje: “A morte o esperava\ desde o rumor de fogo\ nas entranhas,\ desde o rumor do tempo.\ A morte o esperava\ desde o sopro e a palavra,\ desde o vento.\ A morte esperava\ como um ventre.” (Morte do Lavrador: inumação). Versos que se abrem para outro universo no “Poema da Devastação”: “Há uma devastação\ nas coisas e nos seres,\ como se algum vulcão\ abrisse as sobrancelhas\ e ali, sobre esse chão\ pousassem as inteiras\ angústias, solidão\ passados desesperos\ e toda a condição\ de homem sem soleira\ ventura tão curta\ punição extrema.” Celebro os que, como Nejar – com a sutileza da boa poesia – não nos deixam esquecer os olhos das crianças nas esquinas da fome e os assassinados pelo ódio, disseminado nos andares do poder. Isto é a América, isto é o Brasil !

Se existem fios fortes – embora invisíveis – que ligam a América Latina, a partir dos seus atores políticos, intelectuais, partidos, militantes, movimentos de caráter emancipacionista entre si, estes fios passam não só pela importância das relações políticas entre líderes, mas também pela produção intelectual literária e política, baseada em três pilares culturais importantes da nossa América: a luta contra a tradição escravocrata e contra a barbárie, no processo de dominação das populações originárias em toda a América; a luta contra a dominação imperialista e a forte tradição intervencionista e de apoio aos golpes militares pró EUA, no Continente; as lutas de resistência vindas do campo, a partir do exemplo romantizado da Revolução Cubana, como “exemplo” moral, já que aquelas condições de instauração de um regime socialista não eram e não são repetíveis, nem como modelo econômico, nem como possibilidade de poder.

Os fios da história se tecem com ideias e ações políticas, exercidas a partir dos limites desenhados pela economia, pela religião, pelos dados materiais da formação econômico social, mas também com as omissões e os silêncios. Hoje as omissões, os silêncios e as mentiras, concorrem nas redes e ao mesmo tempo que aumentam os poderes clandestinos do capital, abrem novas frentes de luta e resistência, nas selvas fictícias da internet. As lutas “de baixo” são silenciadas e omitidas pelos poderes de turno e as supostas glórias dos “de cima” são cantadas pela má literatura e péssima poesia dos seus escritores, cegos pelos preconceitos e desnorteados pelas luzes, que agora vêem, desnorteados pelas suas experiências do esgoto. Eles só chegam a ter relevância quando a democracia fenece: o General Lyra Tavares foi da Academia Brasileira de Letras, Weintraub foi Ministro da Educação e eu me recuso a saber o nome do “secretário” de Cultura do Brasil.

Abre-se, todavia, para a América do Sul, um novo tempo de luta pela formação de uma identidade nacional e por projetos soberanos e compartilhados de nação e eles vem de uma nova unidade no campo da geopolítica mundial, pela qual bloco China-Rússia põem cartas na mesa, no “Protocolo das Olimpíadas de Inverno” firmado recentemente entre os dois países. As cartas já estão presentes, pois a força econômica e política destas duas grandes nações, retiraram todos os Governos sérios da América Latina da condição de “obediência devida” obrigatória aos norte-americanos: não precisarão mais orientar suas economias nem subordinar seus processos de desenvolvimento (ou articular-se com blocos de opinião no cenário mundial), forçados exclusivamente a partir dos interesses americanos. Foi o que a Argentina fez, neste momento, pois, além de acertar-se com o FMI, este país firmou um acordo de 23 bilhões de dólares em investimentos, com o dragão chinês.

As grandes ambiguidades fazem partes dos líderes que se aproximaram das agruras dos seus povos e tentaram, no seu tempo e com os meios disponíveis, melhorar a vida das suas comunidades nacionais: Perón, Getúlio, Batlle y Ordõnez, General Juan José Torres, Allende, General Vasco Alvarado – entre outros- sem romper com o “status quo”, afirmaram a ideia de nação soberana. Eles buscaram criar tempos novos, nos seus respectivos países, frustrados – todos – pela asfixia dos patrões do norte, que já não são os mesmos hoje face o esfacelamento dos poderes da Guerra Fria e pela feição dos novos pólos de poder mundial. A hora é de romper com a letargia e o conformismo trazidos ao cerne da nossa política, para adotar um “não alinhamento ativo”, que nos permita selecionar parceiros, em cada caso concreto, a partir dos nossos interesses soberanos, baseados numa cooperação autodeterminada.

Não sei essa nova disposição dos atores no tabuleiro global terá um fim virtuoso, ou não, porque as leis da História não são leis de bronze, de molde a erigir – em cada momento de crise e terror – oportunidades reais e subjetivas mais profundas de mudança, como muitos de nós gostaríamos. A bússola que tem guiado me diz, todavia, que sem derrotar no Brasil, de forma humilhante, o fascismo negacionista e assassino, ninguém terá futuro nesta América, herdada das ditaduras dos anos 70. Um livro também me vem à cabeça neste momento: “El no alineamento activo y América Latina”, de Carlos Ominami, Jorge Heine e Carlos Fortin, (“una doctrina para el nuevo siglo”), cuja reflexão se inscreve como contribuição de primeiro grau, para os novos tempos que nos esperam, contribuição que poderá absorvida por Chile, Brasil e Argentina, e quem sabe a Colômbia, para postular que a América do Sul – numa frente unida para enfrentar os novos e duros tempos que vem por aí – possa escrever os fios (visíveis) da História para um novo período libertário e democrático da nossa América. Para que um dia nunca mais aconteça!

(*) Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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