Opinião
|
22 de fevereiro de 2022
|
07:30

A vida é mais do que aquilo que conseguimos viver (Coluna da APPOA)

Foto: Gilson Mafacioli/Arquivo pessoal
Foto: Gilson Mafacioli/Arquivo pessoal

Volnei Antonio Dassoler (*)

A vida é mais do que aquilo que conseguimos viver, escrever, contar, ver. Ampliado pelo arsenal tecnológico, qualquer acontecimento com proporção de desastre em nosso planeta é fecundo em imagens da fragilidade e precariedade da condição humana. Foi o que vimos no ataque ao WTC, em 2001, no incêndio na boate Kiss, em 2013, no rompimento da barragem em Brumadinho, em 2019, no contexto extensivo da covid, e o que vemos no atual movimento diaspórico das migrações forçadas. Testemunhas do desamparo que as cenas de violência evocam, por instantes, somos desacomodados da rotina, comovidos pela intensidade que acompanha estes dramas humanos. Por outra via, a banalização do evento, típica da cultura do espetáculo, é facilitada pela reincidência impune da má gestão da coisa pública, que, respaldada por uma maioria de políticos interesseiros, fagocita fragmentos de vidas.

O fluxo incessante e renovado de imagens e notícias, característico do mundo globalizado e hiperconectado, que opera pelo estímulo ao consumo desse conteúdo, traz o risco da massificação e da banalização do sofrimento e do evento. É preciso fazer um esforço para resistir a essa tendência. No caso específico das inundações e deslizamentos ocorrido em Petrópolis, na semana passada, por exemplo, a abordagem e a equação das consequências do desastre precisam incluir, além dos fatores climáticos, humanos e geográficos, a responsabilidade dos diferentes entes públicos e daqueles a quem compete a gestão do espaço urbano e que, voluntariamente, se ofereceram ao exercício dos cargos públicos. Instalados nestes lugares de autoridade, devem estar cientes dos encargos e das responsabilidades inerentes às funções que ocupam para, como representantes do povo, não desdenhar ou terceirizar as dificuldades a inimigos astuciosamente fabricados.

Particularmente, um dos registros mais dramáticos e perturbadores no contexto da tempestade mostra passageiros que, na luta pela sobrevivência, tentam se equilibrar em cima das carrocerias de dois ônibus para escapar da correnteza das águas. Ao assistir ao que se passava, senti-me arrastado para dentro da própria cena, fazendo companhia à cada um dos que, capturados pela armadilha de um mau encontro com o destino, digladiavam-se por sobreviver. Ainda hoje, embora com menor frequência, sou usuário do transporte coletivo, o que, em nosso país, tem marcação social. Neste meio de locomoção, anônimos juntam-se a outros anônimos, compartilhando, durante o deslocamento no tempo e no espaço, uma segunda viagem: a dos devaneios. Com os olhos levemente fechados e sem perder a conexão com a realidade, entregam-se voluntariamente às fantasias. No ônibus ou no trem, sonha-se acordado, metáfora para uma faceta da dinâmica psíquica que se abre para uma vida paralela na qual se ensaiam diálogos, soluções de problemas e realizações de desejos. Por um breve instante, antes de descer no ponto e retornar ao mundo real, dribla-se a censura em favor da imaginação e de um tanto de satisfação.  

A intensidade da chuva pedia vigilância e, desta vez, não foi possível, para esses passageiros, se abrirem à brecha sublimatória dos devaneios, como ficamos a saber pela divulgação dos áudios e mensagens enviados por eles a seus familiares. Ao ver e ouvir os relatos, sou tomado por uma intensa experiência de angústia, emudeço e evito acessar qualquer meio que possa me reenviar aos acontecimentos, não suportando mais ser espectador ou testemunha. Esta retirada, importa dizer, não decorreu de um ato voluntário e estratégico de evitação. A saída foi determinada por uma ação que intimamente se impôs a mim, desterrado da calmaria do sentido, colapsado pelo efeito do traumatismo, encontro limite com a crueza das imagens que implodiram as vias interpretativas para o que se mostrava aos meus olhos. 

Sempre que somos expostos de maneira disruptiva ao horror e a determinadas perdas, buscamos pelo sentido, pelo entendimento, pela razoabilidade. Afinal, mesmo reconhecendo que a cultura é um projeto incompleto em sua pretensão de eliminar o mal-estar, nossa adesão ao pacto civilizatório pressupõe a crença e a confiança nos artifícios simbólicos que o sustentam. Assim é muito difícil a qualquer um de nós – como seres falantes – não crer em alguma coisa, mesmo que seja recorrendo a risíveis superstições. Entretanto, neste caso, dizer que a vida é mais do que conseguimos viver não é uma convocação de diálogo dirigida ao místico ou ao sobrenatural. Com ela, intenciono (nos) lembrar que a vida não cabe apenas no que vemos, pensamos, desejamos, sentimos ou fizemos. Ela também é aquilo que pulsa de forma irregular: desmedida, ela nos excede ou nos emudece.

Em contextos traumáticos, como tantos que acompanhamos, o recolhimento e a escolha pelo silenciamento advêm como uma reação legítima e frequente que não implica, como se poderia pensar, qualquer intenção de esquecimento ou apagamento. Algo do vivido permanece, resiste e insiste e, justamente por isso, não poderá ser mascarado por nenhuma falsa compreensão de normalidade como a que verificamos na composição estatística e etiológica pela que a mortalidade da covid é associada à existência de comorbidades. Isto significa, basicamente, que alguém tem duas ou mais doenças agindo ao mesmo tempo no organismo, circunstância que pode favorecer o agravamento de um dos quadros clínicos. 

O uso distorcido e generalizado deste achado científico no âmbito da pandemia naturalizou de maneira perversa a ocorrência de mortes que poderiam ter sido evitáveis. Nesse modus operandi, o fato clínico de serem idosas, diabéticas, hipertensas ou terem sobrepeso ou doenças cardiovasculares foi usado para justificar sob a rubrica “comorbidade” a morte de pessoas que – mesmo em sua condição clínica – poderiam ter vivido ainda anos ou décadas.

Esta indignação, que ainda me acompanha sempre que reportagens e relatórios oficiais dão destaque à comorbidade, o que, em última instância, minimiza responsabilidades coletivas e políticas, fazendo recair culpa na própria vítima, é semelhante à que sinto ao concluir que a vida de alguns passageiros não foi encurtada e determinada unicamente pelo excesso de chuva, mas decorreu também de desvios e má aplicação de recursos financeiros no âmbito público. As pessoas com covid (com ou sem comorbidade), as que morreram no incêndio da boate Kiss e aquelas que estavam nos ônibus queriam viver. Simples, assim.

(*) Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre. Doutor em Psicologia Social e Institucional (UFRGS). [email protected] 

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora