Opinião
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1 de janeiro de 2022
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16:53

O maravilhoso mundo do plantão judiciário (por Marcelo Sgarbossa)

Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Foto: Maia Rubim/Sul21
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Foto: Maia Rubim/Sul21

Marcelo Sgarbossa (*)

 

Procurada por um cliente, precisei acionar o plantão judiciário durante o recesso. Os direitos não escolhem a hora, e assim sempre será.

Minha memória do serviço de plantão era ainda dos tempos em que os processos judiciais eram físicos, dos tempos em que se levava o pedido pessoalmente até o Fórum Central de Porto Alegre. Lá você falava com uma pessoa de carne e osso, que recebia o pedido e encaminhava à juíza ou à desembargadora de plantão. Já estive do outro lado também, como assessora de desembargadora do Tribunal de Justiça. Inclusive fiquei responsável por alguns plantões. Lembro de ficar com o telefone do plantão do celular, para que as advogadas pudessem falar diretamente com a “assessora da juíza”. No caso do “meu juiz”, ele não tinha problema nenhum se tivesse que falar diretamente com as advogadas, mas isso é outra história. Não estou mais trabalhando com ele, e não preciso mais puxar o saco dele. Nem ele gostava de puxa-sacos, e sempre detectava na hora um.

Voltando ao plantão. O processo agora é todo eletrônico. Que bom; que ruim. Ao menos para o plantão. No site do Tribunal, diz que o advogado deve fazer contato telefônico com o plantão. Então, faço pedido para o meu cliente, protocolo no sistema, e ligo para lá.

A mensagem eletrônica começa dizendo que não precisa ligar pois tudo é feito via sistema, sem necessidade de ligar para confirmar (sic). Maravilha, eu não estava a fim de falar com ninguém mesmo. Confiando no sistema, desligo o telefone e espero uma manhã inteira. Cada hora que passa é uma angústia para mim e para o cliente. Decido ligar novamente. Vou até o final da mensagem para ser atendido por alguém de carne e osso. Nada. Entra a musiquinha de espera. É uma boa seleção. Não que eu entenda de música, mas as que tocavam eu conhecia. Esse é meu pobre parâmetro de julgamento musical.

Me chamou a atenção quando entrou What a Wonderful World, do Louis Armstrong” (tive que olhar no google). Lembrei da expressão “mundo do direito” que alguns professores universitários ainda continuam usando; tem quem acreditar que é um mundo separado mesmo; um mundo diferente, limpinho, idílico até.

Eu gosto de “chá-de-banco”. Pode até ser “chá-de-banco” eletrônico telefônico. Sempre tem louça para lavar ou colocar as mensagens do “Whats” em dia. Sei que tem muito trabalho judiciário; me esforço para me colocar no lugar das servidoras; já fui também. Mas plantão é plantão; é urgente. Não pode faltar gente para atender. Alguém que manda no “mundo do direito” decidiu colocar poucas servidoras no plantão. Este é o ponto.

Escutei várias vezes o What a Wonderful World. Quando chegou nos 30 minutos de espera, a ligação caiu. Vamos de novo. E de novo. Até que consegui. Alguém falou comigo. A orientação passou então para o seguinte: mandar um e-mail para o serviço de plantão. Fiz, mandei. Recebi pronta resposta. Obrigado servidora. Fui muito bem atendido toda vez que alguém de carne e osso aparecia. Mas na resposta do e-mail, outra orientação: ligar para outros 5 números de telefone para acionar o plantão… Santa paciência Batman! Vamos lá, tudo pelo direito do cliente.

Dos 5 número fornecidos, só 1 chamava até cair. Os outros não completavam. Acho que entendi a lógica: “pega estes 5 números doutor, um deles deve funcionar”. Fiquei insistindo naquele que me deu mais esperança. Finalmente consegui. Uma segunda pessoa de carne e osso me atendeu. Muito gentil, educada e prestativa. Avisei que tinha feito um pedido no plantão. E a pessoa prontamente disse que encaminharia, via sistema, para a juíza de plantão. Ah, entendi. O sistema não esta configurado para ir para o juiz de plantão (ou ao menos para a assessora da juíza de plantão). Coisas do Wonderful World

Sim, finalmente eu consegui ter direito à análise de uma juíza. Não vou ficar contando o processo, e que tive que recorrer pois a juíza não leu meu pedido, etc. Aí é do jogo. E todo mundo tem sua história para contar.

O que me motivou a escrever este relato foi mesmo o Wonderful World. Acho que é a tal falta de alteridade de sempre, do judiciário e de outros mundos por aí.

Ps: Escrevo tudo no feminino pois até hoje sempre escrevi no masculino. Talvez compense um pouco meus machismos.

(*) Advogado

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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