Opinião
|
6 de janeiro de 2022
|
17:02

Análise da nova onda de covid-19 em Pelotas (por Sandro Ari Andrade de Miranda)

Segunda dose de reforço terá público alvo ampliado | Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
Segunda dose de reforço terá público alvo ampliado | Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Sandro Ari Andrade de Miranda (*)

Em dezembro de 2021 eu questionei a Prefeitura de Pelotas, por meio da Lei de Acesso à Informação, a razão pela qual dos cerca de 54.572 testes que constavam no banco de dados da Secretaria Municipal de Saúde, 94,23% apresentavam resultado positivo. Para dar uma ideia de como este número é absurdo, no Rio de Janeiro hoje, conforme noticiado pela imprensa carioca, de cada 100 testes, apenas 50 são positivos, dentro de um ambiente de crescimento da doença. Lembrar que este é o Estado onde sabidamente há a mais baixa taxa de testagem do país e a maior índice de subnotificação de casos, governado por um político que segue a cartilha genocida no bolsonarismo.

A resposta da vigilância epidemiológica foi de indignação porque eu argumentei que os números apresentados pelo Município indicavam uma potencialmente elevada subnotificação de casos de covid-19. Sustentei que o número extremamente elevado de testes positivados poderia ser motivado por duas razões não excludentes: ausência da contabilização dos testes que resultaram negativos; ou alta subtestagem. Particularmente, entendo que os dois motivos estão corretos, a Prefeitura não contabiliza os testes negativos, em sua maioria testes rápidos realizados em laboratórios privados e farmácias e, ao mesmo tempo, não faz um trabalho de monitoramento e rastreamento adequado, realizando poucos testes, sempre quando o próprio cidadão infectado busca auxílio dos serviços sanitários, sofrendo um quadro sintomático mais grave.

Dentro de um ambiente de efetiva preocupação com os riscos da pandemia, os serviços de fiscalização da administração investigariam todos as possibilidades de ameaças para a segurança da população. Isto vale não apenas para a vigilância epidemiológica, mas para todas as áreas de controle e fiscalização governamental, inclusive fora do âmbito da pandemia. Mas a cultura neoliberal que domina o cenário político brasileiro também cria um ambiente destrutivo, com falta de servidores, falta de insumos, falta de receita e, principalmente, falta de comprometimento social dos governantes.

Entretanto, os números apresentados pela Prefeitura evidenciam que a taxa extremamente elevada de mortes causadas pela covid-19 na cidade de Pelotas, 373,19 óbitos para cada 100 mil habitantes, muito superior à média estadual de 320,6/100 mil e, acreditem, à nacional, de 288,4/100 mil, também é o resultado de escolhas políticas, que se explicam tanto pela velocidade flexibilização das medidas de controle, quanto por erros na condução e na política de comunicação, como pela subtestagem.

Se os números da SMS estiverem certos, a cidade realiza 0,15 testes por habitante. O número é quase a metade da média nacional, que já é muito baixa, de 0,296 por habitante. Países com bons resultados no controle da pandemia, como a Dinamarca, com a baixíssima taxa de mortalidade de 57,6 mortos a cada 100 mil, realizaram controle elevado e rigoroso. No caso dinamarquês, com 18,75 testes por habitante. Mesmo a negacionista Suécia, com uma taxa de mortalidade de 150,6 óbitos a cada 100 mil pessoas, realizam 1,497 testes por habitante (dados do Woldometer, de 06/01/2022). Lembrar que Suécia e Dinamarca são países nos quais os idosos acima de 65 anos representa mais de 23% da população, enquanto em Pelotas, segundo dados do Censo de 2010, os idosos acima dos 60 anos representam apenas 15,16% dos habitantes. Portanto, não foi o fato da covid-19 ter produzido um senicídio, o motivo porque mais pessoas morreram em Pelotas, do que a média estadual, a nacional e, principalmente, a mundial.

O problema da testagem realizada na cidade é agravado por outro fator, que é a extrema dependência dos testes (caros) realizados por farmácias e laboratórios privados. O setor público concentrou as suas ações nos casos mais graves, razão pela qual o único indicador relativamente confiável em Pelotas, assim como no Brasil, é o de óbitos. Mesmo assim, em 2021 o Painel do Conselho Nacional dos Secretários de Saúde – CONASS identificou um excesso de mortalidade não coberto pelos mecanismos de monitoramento.

Pensar que testagem, monitoramento e controle rigoroso de indicadores é um problema pequeno consiste num erro grave, fruto de uma cultura que nega a ciência e o conhecimento, ou apenas apela para esta de forma eletiva em momentos de necessidade imperativa. Dentro de um ambiente onde se busca compatibilizar um funcionamento regulado da economia com a salvação de vidas, investir em controle é o único caminho possível. E a cidade de Pelotas possui todas as ferramentas para isto, pois é a sede de um programa de monitoramento da doença internacionalmente reconhecido, que é o EPICOVID/UFPEL.

No entanto, não é o que se observa, pois a falta de investimento em controle e rastreamento e a extrema dependência dos testes pagos para conhecer a realidade da doença, é um dos fatores que levou a cidade a sofrer com uma perda extrema de vidas, perdas que seriam evitáveis. Mesmo quando o Município resolve testar, faz errado, colocando um posto de atendimento para testes no local com maior movimentos de pessoas na cidade, cercado por bares com grande concentração de público. O ideal seria fortalecer as estruturas das unidades básicas de saúde, distribuir pequenos postos em locais de concentração e criar unidades móveis para cobrir os locais com possíveis surtos. Isto seria o básico, dentro de uma lógica racional de gerenciamento de crises.

Quem olhar para o mapa geográfico de expansão da doença, a maior parte dos casos e óbitos em Pelotas ocorreu em bairros populares, onde reside a população pobre e os prestadores dos serviços essenciais, como Santa Terezinha, Gotuzzo, Dunas, Navegantes, dentre outros. Para quem tem uma renda de 1 ou 2 salários-mínimos, pagar R$ 90,00, R$ 150 ou até R$ 300 por um teste privado é algo inviável, e esta exclusão derivada da privatização do controle resultou numa tragédia que foi sentida pelas famílias das vítimas.

No dia de hoje, o Painel Covid-19 da Prefeitura de Pelotas, indica um índice de transmissibilidade do vírus SARS-Cov-2 de 3,71. Isto significa que cada infectado pode transmitir a doença para 3,71 pessoas e esta pode se expandir em progressão geométrica. Além disto, a faixa etária dos doentes, preponderantemente entre 17 e 59 anos, indica também que a demora no processo de vacinação e a flexibilização das medidas de contenção em bares, festas e locais de grande concentração, é a principal responsável pelo avanço dos riscos, algo que foi intensificado com as comemorações de final de ano e o verão. Este cenário em 2021 resultou no mais alto índice de mortalidade por Covid-19 e bloqueio total por bandeira preta por 15 dias, situação que poderia ter sido evitada com a adoção de restrições mais sólidas e melhor estratégia de comunicação, mas a Prefeitura até tirou o alerta da pandemia das suas páginas, apresentando uma imagem falsa de normalidade. Não podemos esquecer que os sintomas da covid-19 levam até 2 semanas para se manifestar. Logo, há uma tendência de agravamento.

Na Holanda, mesmo com uma taxa de imunização acima de 80%, quando a Ômicrom aportou no seu território e subiram o número de casos, rapidamente o governo decretou Lockdown. Acredito que esta medida extrema não é necessária ainda, pelo menos em todos os setores da economia, mas urge a restrição das atividades que promovem a concentração de público. Depois de 2 anos de sofrimento e distanciamento social, este discurso parece antipático, mas não há prazer efêmero de uma festa que valha uma vida ou uma vida de sequelas ou, ainda, a morte de um familiar. Infelizmente, a pandemia ainda não acabou e somente existem duas formas para derrotá-la: a farmacológica, pela vacina; e a não farmacológica, pelo controle e monitoramento. Além do mais, apelar para crenças de positividade e deixar de falar no problema não acaba com a doença.

(*) Advogado, doutorando em sociologia

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora