Opinião
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26 de janeiro de 2022
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15:03

Alô Defensoria Pública, tem alguém aí? (por Marcelo Sgarbossa)

Foto: Luiza Castro/Sul21
Foto: Luiza Castro/Sul21

Marcelo Sgarbossa (*)

Preocupado, escrevo. E escrevo publicamente, porque ofícios facilmente se perdem nas gavetas dos gabinetes. Já estive neste lugar, e provavelmente não consegui atender a maioria dos pedidos que chegaram. Mas me conforta pensar que me ajudaram a entender melhor as demandas sociais, e verificar a cada dia o quanto é injusto nosso país. Preciso fazer algo com os mandatos e o conhecimento que a cidade me oportunizou. Nunca deixei de atender uma só pessoa.

Preocupado, escrevo. Escrevo porque quero bem; porque tenho relação e relações; por que foi ali que “me criei” como advogado. Devo muito a esta instituição. Foi através dela que o  direito passou a fazer sentido: defender as pessoas do sistema, com os instrumentos (limitados) do próprio sistema. O tal “mundo do direito” de sempre, e todas as suas perversidades.

Recém chegado em Porto Alegre, passei na prova de seleção para estagiário em 2001. Lá vou eu para o núcleo de família, que ficava no centrão, na Rua Jerônimo Coelho. No segundo dia de estágio, já dividia com a minha querida Defensora Pública Arilene o atendimento. Adoro estas mulheres espoletas. O aprendizado muitas vezes é assim: você precisa ser jogado “aos leões”, no susto mesmo, sem mimimi. Foi o que a Doutorinha Arilene fez comigo. E eu me apaixonei. E foi na Defensoria que fiquei até me formar. Passei pelas mãos da Vera, da  Marcia Muller, da Sonia, da Jane, da Marta Bublitz, do Renato, da Sandra, Célia, Iara, Mara, Silvana, Adriana Burguer e tantas outras. Mulheres e homens que, mesmo parecendo ter origem em “berços de ouro”, tinham uma profunda sensibilidade social, altruísmo e pratica da alteridade. O conceito de “pegar ficha” era relativo. Ninguém ia embora sem ser atendido. Nós, estagiários e estagiárias, utilizávamos a estratégia de atender as pessoas antes das defensoras chegarem. Para agilizar. Nossa geração já dava sinais daquilo que talvez esteja acontecendo agora. Já as Defensoras não: elas adoravam bater longos papos com as pessoas. Eram intermináveis sessões de terapia…

Fato 1: Instituto de Acesso à Justiça. Quando o querido mestre João Abílio Rosa (in memorian) decidiu criar uma Associação com a sigla IAJ, dentro da Defensoria Pública correram vozes de preocupação. O receio de perder este lugar, de atendimento a quem é pobre, ficou evidente. Não sei dizer se o receio tinha origem em sentimento nobre ou perda de poder. De qualquer forma, o fato de ter causado desconforto a existência de um “concorrente” é, objetivamente, positivo (“os pobres são nossos!”).

Fato 2: Ministério da Justiça, 2009. Os anos se passaram e lá estávamos nós, numa reunião complicadíssima. De um lado a “cúpula” do Ministério Público brasileiro; do outro a “cúpula” da Defensoria Pública brasileira. Mediação do Secretário de Reforma do Judiciário, Rogério Favreto, que me convocou para ser seu Coordenador-Geral de Democratização do Acesso à Justiça. Pauta: analisar os questionamentos do MP à proposta de lei que resultou na Lei Complementar 132/09. A proposta fortalecia a Defensoria tanto em competências como perante demais órgãos do sistema de justiça. Não tenho palavras para descrever os argumentos trazidos pelo MP naquela reunião. O medo de perder espaço para a Defensoria Pública era decepcionante. O governo tinha lado. E não era contra o MP. Era de ampliação e democratização do acesso à justiça.

Preocupado, escrevo. E agora, 20 anos depois, como anda a nossa valorosa Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul? Não tenho números, só evidencias e experiência concreta. Na retomada da advocacia, minha clientela tem se constituído em grande parte de insatisfeitos e não atendidos pela Defensoria. Insatisfeitos pois não tem retorno, informações, atendimento mesmo. Talvez o fortalecimento da Defensoria não tenha sido suficiente? Talvez. Das vezes que liguei para buscar informação percebi que o atendente (muito gentil) estava mais preocupado em registrar o atendimento (para depois ir para a planilha e mostrar a enorme quantidade de atendimentos diários), do que entender qual era mesmo o meu problema. Vejo equipes da Defensoria pública nas manifestações; vejo a existência da ouvidoria. São ações interessantes, mas são efetivas ou apenas de visibilidade da instituição? 

Sim, eu tenho receio do “acastelamento” dos Defensores e Defensoras; da perda de contato direto com os assistidos e assistidas, da perda de sensibilidade social, do excesso de barreiras para falar diretamente com o Defensor e Defensora. Já temos instituições demais longe do povo, não precisamos de mais uma, sobretudo daquela que nasceu e se fortaleceu para estar lá perto, junto e ao lado do povo, razão da sua própria existência.

(*) Advogado, Diretor do Laboratório de Políticas Públicas (Lappus)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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