Opinião
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21 de dezembro de 2021
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08:05

A lírica desanuviada de Quantas tantas (por Ronald Augusto)

"Quantas tantas", de Mel Adún (Divulgação)

Ronald Augusto (*)

Perguntas à poética de Mel Adún. Quantas vazantes e interdições participam da fatura de um poema? Como pode um poema, plasmado em sua secura às vezes de pedra desamorosa ao corpo, surtir uma água tão espessa e viva? Malgrado a panglossia, hoje, das denúncias transeuntes contra o racismo, algumas intervenções se destacam além do politicamente tolerável, além do compromisso com as causas históricas relativas às formas de vida de negros e negras em condições brasileiras. Causas que, se por um lado, conferem ao poema certa beleza moral, de outra parte atribuem a esse mesmo poema um estatuto previsível e presunçosamente imperativo. Contudo, chamar a esses poemas, entre comovidos e enviesados, de intervenções talvez seja inapropriado. Soa como um falso euteamo – vezo explicativo, enjambrado –, afinal de contas, como uma vez já disseram, um poema não quer ser compreendido, mas amado.

Minha leitura, então, avança largamente tateante. Quantas tantas não se recusa aos litígios da lucidez, nem se encasula nos paramentos da emoção ritual tão agradável ao sonho de autorreconhecimento de muitos leitores. Os poemas de Mel Adún, graças à enganosa naturalidade com que se movimentam, atraem o leitor para o seu centro, mas chegando a esse recinto o que se percebe aí é que nem tudo se deixa grafar como dengo ou aceno sentimental seja ao igual seja à alteridade; nem tudo é transparente e amistoso como aquela outra água que recebe raio de luz e permanece unida. A poeta talvez até quisesse algo assim, mas a linguagem entranhada às sujidades da vida, isto é, a linguagem sendo a nódoa de lama no lamê, a linguagem sendo a própria vida meditada, acaba se impondo.

Eu queria.
Eu juro que queria.

Vinte e três minutos
vem a morrinha
da morte matada.

Direi algo meio anódino, que espero melhorar adiante, vá lá: os poemas de Quantas tantas revelam a força de uma poeta lírica. Entretanto, o lirismo com o qual Mel Adún confina não tem relação nenhuma com aquele lirismo funcionário público de que falava o velho poeta do Recife – que, por sinal, já teve seu machismo tronchado pela dicção da autora –, seu lirismo é realista, contido e desanuviado, porém numa acepção que me obriga a mencionar o filme Ladri di bicilette (1948), cuja história me nego a resumir, preguiçoso leitor; assista ao filme. Quantas tantas, o realismo construído, narrado; imantado de linguagem; meditado em imagem verbal, assim:

lembro do poço
na frente de casa
ao qual recorríamos
na falta de água;
a técnica pra jogar o balde
amarrado na corda
levemente inclinado

Sigo tateando – um sem-fim de sentidos – palmilhando esses poemas de Mel Adún. Os negaceios com a memória. Algumas intimidades recriadas e vindas à superfície de versos longos e coloquiais onde a dor indecorosa de Salvador se refrata em outras plagas: o exílio da Bahia, a saudade de coisas que só restam dendi casa. Casa diante da qual se dizia “ô, de casa!”. Mas agora não há mais casa, não. Entre as capas de Quantas tantas é onde habitamos precariamente. Não há mais casa, não. Há apenas tempo e águas nos poemas de Mel Adún: “o tempo/ nos leva de volta/ pronde tudo começou”. Mas por detrás desse apenas resta um fabuloso esforço de construção poética, dissimulado de maneira a permitir que o fruidor e a fruidora se sintam convencidos de que manejam uma liberdade de leitura; liberdade que, ao fim e ao cabo, sabe a uma esperança sem fios. O mérito de Quantas tantas: a leitura jubilosa desses poemas nos faz supor que somos leitores libertos.

(*) Ronald Augusto é poeta e ensaísta. Formado em Filosofia pela UFRGS e mestrando em Letras na mesma instituição. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya(1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004), No Assoalho Duro (2007), Cair de Costas (2012), Oliveira Silveira: poesia reunida (2012), Decupagens Assim(2012), Empresto do Visitante (2013), À Ipásia que o espera (2016),Tornaviagem (2020) e O leitor desobediente (2020). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com e é colunista do Sul21.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 

 


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