Opinião
|
20 de dezembro de 2021
|
12:04

A Cúpula de Biden e a Democracia de Xi (por André Moreira Cunha e Andrés Ferrari)

Xi Jinping e Joe Biden na Assembleia Geral da ONU (Foto: ONU/Reprodução)
Xi Jinping e Joe Biden na Assembleia Geral da ONU (Foto: ONU/Reprodução)

André Moreira Cunha e Andrés Ferrari (*)

“A triste realidade é que a política internacional sempre foi um negócio implacável e perigoso, e é provável que continue assim.” (John J. Mearsheimer, “The Tragedy of Great Power Politics”, 2001)

“A maneira mais eficaz de destruir as pessoas é negar e obliterar a compreensão de sua própria história.” (George Orwell)

Cinquenta tons de cinza na guerra de narrativas sobre a democracia 

O “auge da hipocrisia”. Esta foi a definição dada pela revista “Time” à “Cúpula para a Democracia”, evento organizado pela administração de Joe Biden. Durante os dias 9 e 10 de dezembro, chefes de Estado, diplomatas, líderes da sociedade civil, empresários e acadêmicos avaliaram a situação da democracia global com vistas a buscar seu fortalecimento. Já em seu discurso de posse, Biden prometia que “…uma vez mais, nós podemos fazer da América a força de liderança para o bem no mundo”. Na sua Cúpula reafirmou a convicção de que: “… os Estados Unidos vão liderar pelo exemplo, investindo em nossa própria democracia [e], ao mesmo tempo, apoiando nossos parceiros em todo o mundo”.  

Enquanto mais de uma centena de líderes nacionais discursavam e “trocavam experiências”, chamou à atenção a elasticidade no arco dos “parceiros” convidados, particularmente dos líderes cuja credenciais democráticas são amplamente questionadas. Tão decepcionante quanto a ousadia nesta definição, foi a timidez na estruturação de iniciativas concretas capazes de conter o que os organizadores entendem como sendo “o avanço do totalitarismo no mundo”. É bem verdade que o anfitrião anunciou um programa de apoio à transparência, ao aprimoramento da governança, ao combate à corrupção e à livre difusão de ideias (“Initiative for Democratic Renewal”), para o qual reservará US$ 424 milhões para diversas iniciativas diplomáticas. Tal montante equivale a 0,02% dos gastos discricionários para o próximo exercício fiscal da maior economia do planeta. Não se trata, portanto, de um montante que possa reverter o movimento global de deterioração da democracia.

Três pontos concentraram as discussões virtuais: a ameaça dos regimes autoritários, o enfrentamento da corrupção e a defesa dos direitos humanos. São temas polêmicos e que dificilmente seriam fáceis de enquadramento na história de seu anfitrião e de muitos dos seus convidados. Das chagas profundas que marcam a história da formação dos EUA, particularmente no que se refere à desconsideração para com os direitos das populações indígenas, afrodescendentes ou de outros grupos raciais e identitários, aos episódios recorrentes de violência oficial contra tais minorias, de corrupção e de apoio a regimes políticos autoritários. A história de abusos no uso da força foi comum em todas as potências europeias que expandiram seus tentáculos desde a era das modernas descobertas. E, também, em todos os impérios construídos ao longo da história.

No caso recente dos EUA, a desigualdade crescente, a fragilização dos mecanismos de mobilidade social ascendente e a ausência de confiança da sociedade em seus representantes minam o próprio conceito de que o poder emana do povo e para ele deve ser exercido. Para a sociedade estadunidense, as políticas públicas são definidas não pelo cidadão comum, mas pelas elites econômicas e grupos de interesse. Tal percepção é um fenômeno global, com especial força nas tradicionais democracias liberais do mundo ocidental, conforme atesta pesquisa recente da Universidade de Cambridge. Não à toa, as críticas à Cúpula de Biden se multiplicam.

Para Ted Piccone, do prestigioso Brookings Institute, só haverá democracia se as sociedades se tornarem menos desiguais. Javier Solana, ex-Ministro das Relações Exteriores da Espanha e ex-Secretário Geral da OTAN, concorda com a premissa de que as democracias devem ser reconstruídas desde dentro e que é perigoso criar grupos separados, incapazes de cooperar globalmente em questões substantivas. Michelle Bachelet (ex-presidente do Chile), Darren Walker (Fundação Ford) e Mark Malloch-Brown (presidente da Open Society Foundations) se alinham ao discurso de Biden, mas demandam ações concretas e robustas em defesa da democracia no mundo.

A despeito das imperfeições reconhecidas até mesmo por Biden, o establishment dos EUA segue acalentando o mantra de que seu país é o “norte da democracia”. Em sua narrativa, China e Rússia são os grandes inimigos das sociedades livres. Estes poderes globais não comungariam dos valores democráticos inspirados por seus pais fundadores. Todavia, a administração Biden não se constrangeu em convidar e dar visibilidade à nova geração de líderes “iliberais”, considerados como ameaças às liberdades democráticas em seus próprios países e no mundo. Aparentemente, os critérios de seleção das democracias são mais geopolíticos do que morais: hoje, como nas alianças do passado, pode ser considerada uma “democracia” qualquer país que se submeta ao poder hegemônico. 

A influente revista “Time” observou que a verdadeira ameaça à democracia nos EUA é interna. O que os seus analistas não exploraram adequadamente é o fato de que os EUA não possuem o monopólio das narrativas que se distanciam da realidade. Ao longo da história, as grandes potências expandiram suas fronteiras e, com isso, o controle sobre outras populações, mercados e recursos naturais por meio do uso da força. A guerra tem sido a regra na disputa pelo poder, e não a exceção. China e Rússia, os arquétipos do autoritarismo na leitura estadunidense, também utilizaram – e seguem a fazê-lo – de todos os meios à disposição para expandir territórios, estabilizar fronteiras e eliminar forças internas capazes de produzir dissensos que possam ameaçar os regimes políticos de cada momento. E, também, buscaram construir suas próprias versões da história, onde o establishment político é enaltecido por entregar prosperidade e segurança para seus compatriotas, mesmo que às expensas das suas liberdades individuais ou da exploração de outros povos. 

No plano global, a disputa pelo poder entre Estados se dá em todas as dimensões: na geração de renda e no comércio internacional; no desenvolvimento de capacidades tecnológicas e militares; na definição dos padrões de consumo e dos estilos de vida; no jogo diplomático e financeiro; na construção de alianças internacionais; e no estabelecimento das regras que governam as relações entre Estados, cidadãos e empresas no plano internacional. O uso da força, usualmente por meio das guerras, sempre fez parte do repertório dos poderes afirmados ou em expansão. Da mesma forma, estes buscam desenhar narrativas que justifiquem o exercício de imposição da sua vontade sobre a dos demais.   

Estados Unidos e China não fogem a esta regra. Os principais poderes globais contemporâneos acumulam musculatura em todas as áreas, bem como tentam influenciar o tabuleiro do xadrez internacional em suas múltiplas dimensões. A administração de Joe Biden tenta resgatar a narrativa de que a democracia estadunidense é o farol que ilumina a humanidade. Suas eventuais “imperfeições” podem sempre passar por correções, mas jamais deixarão de ser o melhor caminho para o progresso universal. Ao mesmo tempo, concentra forças militares na região da Ásia-Pacífico, organiza novas alianças regionais e tenta relançar as bases da infraestrutura de sua economia, de modo a reduzir a distância do país que já possui o mais avançado estoque de capital do planeta: a China.

Por seu turno, os chineses contestam a narrativa estadunidense de que há uma única fonte que origina os valores democráticos, ou um único conjunto de instituições a expressá-los. Buscam, assim como a Rússia já o fez por meio de Putin, escapar da armadilha retórica de que o mundo se divide entre “democracias” e “autocracias”. Para os estrategistas da China há distintos modelos de democracia, sendo que alguns funcionam, como no seu próprio caso, e outros estão em crise profunda, como no exemplo recente dos EUA. As críticas chinesas ao poder hegemônico contemporâneo são abundantes. Todavia, a capacidade do PCC reconhecer seus próprios limites e excessos não difere daquilo que se verifica nos corredores do poder em Washington. 

China e Rússia reagiram à Cúpula de Biden, no plano retórico e prático: reuniram aliados e expuseram a sua perspectiva sobre a natureza dos valores democráticos e sua concretização em cada um dos seus regimes políticos. O governo de Beijing organizou seu “Fórum Internacional da Democracia: os Valores Humanos Compartilhados”, com representações de 120 países e cujas sessões inaugurais ocorreram dias antes do evento de Washington. O tom geral dos representantes oficiais, tanto chineses, quanto de convidados mais destacados, foi o de criticar a tentativa de imposição de um modelo único de democracia a partir da experiência histórica e valores ocidentais. 

Excluída do cinturão da democracia, a China teve de lidar uma provocação explícita: a presença de Taiwan no clube de Biden. Em resposta, produziu um documento oficial em que defende que sua civilização tem longa tradição democrática, ainda que distinta da Ocidental; e ainda disponibilizou um relatório sobre o “estado da democracia nos EUA”. O governo chinês expressa o conceito de que a democracia é um valor universal da humanidade que se manifesta de formas distintas e pode estar abrigado múltiplos sistemas políticos. É por esta métrica que os seus estrategistas compararam a evolução e o estado atual da democracia nas duas maiores potências do globo. No caso da China, enfatiza-se que, em suas origens, a cultura chinesa, com cinco mil anos, abriga a ideia de que o Estado se origina nas pessoas e a elas deve servir. O longo predomínio de estruturas hierarquizadas de poder de natureza autocrática limitou o seu alcance concreto. Somente com a revolução popular liderada por Mao Zedong e seus herdeiros foi possível avançar para o estágio atual da democracia no país.

Para os chineses, a democracia estadunidense não funciona adequadamente, pois o poder é controlado por poucos e a oportunidades de progresso material e cultural estão bloqueadas para a maioria da população. Tal diagnóstico converge com a própria percepção da maioria da população dos EUA. De acordo com o levantamento registrado pela revista Time “… 85% dos americanos agora dizem que seu sistema político precisa mudar. Eles estão completamente desiludidos com suas estruturas de governo …”.  As análises internacionais rebaixaram o status democrático do país nos últimos anos. A The Economist Intelligence Unit considera que os EUA é “democracia falha” desde 2016. As eleições de 2020, a tentativa de golpe de Estado em janeiro de 2021 e a crescente radicalização política, que visa a minar desde dentro a legitimidade das instituições públicas, revelam um sistema político em crise. Esta também é a conclusão central da Freedom House em seu “From Crisis to Reform”: “O declínio da posição dos Estados Unidos …. mostra até que ponto a democracia americana está sob ameaça e precisa de atenção imediata. Se não fizermos um esforço concertado e sustentado para resolver as deficiências do nosso sistema, a erosão não só pode continuar, mas acelerar, deixando os cidadãos comuns com cada vez menos direitos e liberdades na prática.”. Esta perspectiva não é isolada, mas ganha força na abundante literatura sobre a “crise da democracia”. Aquelas mesmas fontes entendem que a China e a Rússia possuem regimes políticos autoritários. 

Os embaixadores da Rússia e da China nos EUA, Anatoly Antonov e Qin Gang, escreveram um artigo conjunto na “National Interest” (“Respecting People’s Democratic Rights”, 26/11/2021), revista conservadora estadunidense, onde denunciaram a pretensão dos EUA em definir os conceitos universais de democracia e em estabelecer linhas divisórias sobre os países que podem ou não assumir aqueles como parte de sua própria experiência social e política. Para eles, os EUA tentam conter a emergência de uma realidade de poder policêntrico, ao dividir o mundo entre dois campos opostos, em uma mentalidade típica da Guerra Fria. Eles foram explícitos: mais do que uma disputa narrativa sobre aspectos morais ou, neste caso específico, sobre a defesa da “democracia” e das “liberdades individuais”, o que está em jogo é a estruturação de uma ordem global sem um único poder hegemônico. 

A perspectiva de ter de dividir o banquete do poder com visitantes indesejados faz com que os estadunidenses se apeguem cada vez mais à sua narrativa da “história do que nunca foi”: a cidade sobre uma colina, a servir de guia para a humanidade. Foi em um sermão do pastor John Winthrop, em 1630, que se estabeleceu a ideia de que a jovem nação em formação seria a Terra Prometida. O excepcionalismo dos EUA daria ao país o estatuto moral para intervir, mesmo que por meio da força, em assuntos de outros poderes soberanos, como forma de garantir que o bem prevaleça sobre o mal no mundo. A força da narrativa democrática torna-se, assim, a base que legitima o uso elástico do seu poder contra supostas ameaças internas e externas.  

Para além da fumaça retórica, sabe-se que Biden, assim como Trump antes dele, e o establishment estadunidense desejam conter a ascensão da China, a reafirmação da Rússia como poder global e a emergência de qualquer outro poder soberano que não se submeta aos seus interesses estratégicos. Para tanto, precisam de dinheiro, de armas, de aliados e de uma “boa história”, mesmo que de ficção. Se os EUA podem almejar isso, por que não o desejariam China e Rússia? Por isso, a Guerra Fria das narrativas sobre a democracia é parte da disputa em curso pelo poder global. Ilude-se quem imagina que possa haver nela uma fronteira clara entre o bem e o mal. Os grandes poderes não se sentem constrangidos moralmente quando desejam impor, muitas vezes pelo uso da força, os seus interesses. O debate recente sobre o estado da democracia no mundo pode ser útil para relembrar aos demais atores do sistema internacional uma velha lição: o que os grandes poderes fazem importa mais do que aquilo que eles dizem fazer.  

(*) Professores do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora