Opinião
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2 de novembro de 2021
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08:24

Um réquiem para os finados (Coluna da APPOA)

Foto: Gilson Mafacioli (Arquivo pessoal)
Foto: Gilson Mafacioli (Arquivo pessoal)

Volnei Antonio Dassoler (*)

“Aonde está você agora além de aqui dentro de mim”? [1]

O documentário Um encontro com Lacan (2011) é um precioso registro da vida pessoal e profissional daquele que é considerado uma das mais importantes referências da história da Psicanálise. Por meio de depoimentos de amigos, familiares, colegas e pacientes, adentramo-nos em certa intimidade da sua vida e da sua prática. Entre os entrevistados está Suzanne Hommel, nascida na Alemanha e que, assombrada pelos horrores da guerra e do pós-guerra, procura análise com Lacan.

Suzanne relata que desde o início perguntava se a análise poderia deixá-la livre desses tormentos. O silêncio e o olhar de Lacan pareciam lhe dizer que não: algumas dores trazem em si algo de incurável que nos acompanha por toda a vida. Não haveria um refúgio seguro que a protegesse do seu acervo de memórias. Num determinado dia, relata um sonho a Lacan: “acordo todo dia às 5h….. e era às 5h que a Gestapo vinha procurar os judeus em suas casas”. Nesse momento, descreve Suzanne, Lacan levanta-se da poltrona e lhe faz um gesto carinhoso no rosto, geste à peau [2], gesto na pele, ato com efeito significante que produz um furo no real, situando Suzanne num novo lugar de enunciação. Apesar deste deslocamento, “Gestapo” continuará sendo para ela indissociável da representação da maquinaria genocida; entretanto, desde esse momento em análise, em função do geste à peau, o significante passou a ser também contraponto para a angústia. A surpresa pelo ato de Lacan e o próprio ato em si não diminuíram a dor, mas fizeram, diz ela, outra coisa: “eu ainda conto com este gesto, eu ainda o tenho no rosto”, como um apelo à humanidade pela restituição do semelhante – pela via da palavra e pela via da presença – como companhia no desamparo.

Embora já tenha vivido o suficiente para concluir que a morte não tem compromisso quanto a enviar qualquer tipo de comunicado prévio marcando dia e horário para sua chegada, vivo na vã ilusão desse aviso, ansiando por algum tipo de preparo para quem vai e para quem fica. Mesmo sabida, a finitude é sempre um acontecimento que nos força a um exercício de imaginação diante da nossa incapacidade de entendimento frente ao seu inexpugnável mistério. O livro A ridícula ideia de nunca mais te ver, de Rosa Montero, evoca nossa limitação quanto a ver-nos sozinhos após uma perda enquanto assistimos o mundo seguir seu fluxo: “a ideia simplesmente não entra na sua cabeça. Como é possível que não esteja mais? […] como assim não vou vê-lo nunca mais? nem hoje, nem amanhã, nem depois, nem daqui a um ano?”

A rigor, as narrativas acima, como outras próximas a nós, são testemunhos de que algumas dores – traumáticas ou relativas a perdas importantes – se estruturam como experiências determinadas a nos acompanhar pelo resto da vida. Nesse ponto, a mediação simbólica como função protetora de como “viver a morte” comparece com uma diversidade de crenças de natureza pessoal, religiosa e mesmo metafísica, atravessadas pelos ideais de cada época como resposta ao apelo dramático para emoldurar o rombo na existência. É aí que a visitação dos mortos, em seu valor de rito, entra em cena como uma marcação devida a cada vida em particular cujas vicissitudes se registram num inventário infinitizável. 

O dia dos finados nos moldes de um pacto sublimatório social permite conviver, paradoxalmente, a dimensão incontornável da finitude com a permanência de um tipo de presença que não cessa pela ausência do corpo. Na geografia dos cemitérios – “campos santos”-  em dia de finados, esse percurso ganha contornos sensíveis com o vaivém de pessoas às voltas com vassouras, baldes, escovas, panos e água empenhadas em retirar a sujeira acumulada, arrumar as flores, recolher o lixo, limpar a fotografia. Nesse cenário pungente, sussurros, músicas, orações e conversas tecem margens contingentes que renovam a função do luto pela acomodação da saudade. Chora-se antes ou depois, mas, raramente, durante esse momento. Solene e tocante como uma cerimônia, para muitos, o trabalho de limpeza é estrofe de um réquiem, parte da senha de acesso ao lugar onde visitamos nossos mortos, homenagem que faz cessar, por um momento, o lamento da finitude que, situada na face oposta da fruição do viver, marcam a transitoriedade da existência. 

Notas

[1] Verso da música “Vento no Litoral”, Legião Urbana

[2] A pronúncia em francês desta locução soa praticamente igual que “Gestapo”.

(*) Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), Doutor em Psicologia Social e Institucional (UFRGS), [email protected]

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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