Opinião
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8 de novembro de 2021
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10:41

Na beira da Lagoa dos Patos, o encontro da exclusão e do abandono (por Pepe Vargas e Fabíola Papini)

Por
Sul 21
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Hospital Colônia de Itapuã. Foto: Guilherme Santos/Sul21
Hospital Colônia de Itapuã. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Pepe Vargas e Fabíola Papini (*)

O mantra “é preciso estar atento e forte” poderia ser ecoado com menor frequência. Somos frágeis e desatentos, também. Para complicar, os tempos não recomendam vacilos. 

Em meio à privatização da Corsan, CEEE, Sulgás, pedágios, pandemia, retirada de direitos, ataque aos serviços e servidores públicos, aumento da pobreza e das desigualdades sociais, o governo Leite e a prefeitura de Viamão se embolam para definir os rumos do Hospital Colônia Itapuã e a vida dos sujeitos que ali residem. Velhos projetos políticos colam no vigor da tecnocracia da saúde para executar novas violências.

Começamos lembrando que o SUS não é constituído apenas por trabalhadores da saúde e gestores do sistema – como se estivessem de um lado, em oposição à sua “clientela”. Em saúde mental, os riscos desta prática podem levar ao aniquilamento da subjetividade dos sujeitos. Por esforço, dedicação e luta do movimento sanitarista brasileiro, a democracia anunciada a partir do SUS, é elemento estruturante para a garantia do direito à saúde. 

O Hospital Colônia Itapuã, fundado em 1940, foi destino de pessoas apartadas de suas famílias, por força da política de isolamento que concebeu os leprosários. Com o fim das internações compulsórias, muitas pessoas não tiveram um “lugar para retornar” e permaneceram naquele território. Remanescentes deste período ainda residem ali. Mais recentemente, sujeitos em sofrimento psíquico, institucionalizados e oriundos do Hospital Psiquiátrico São Pedro, foram transferidos para esta instituição, seguindo o rito asilar.

Os ruídos em torno de interesses econômicos sobre a área que abriga o Hospital Colônia Itapuã não são novidades. Agora, de forma concreta, há uma nítida movimentação do governo estadual e da prefeitura de Viamão para a “desocupação” da área. O Projeto de Lei 121/2021, de autoria do executivo municipal, aprovado na Câmara de Vereadores de Viamão, autorizou o município a firmar um convênio com a Secretaria Estadual de Saúde (SES) para proceder a desinstitucionalização de pacientes da saúde mental e ex-hansenianos, e transferi-los para moradias e residenciais terapêuticos fora do território do HCI.

O tema é complexo, sensível e exige a delicadeza da compreensão do significado deste passado-presente. Há uma pergunta que insiste em não ser respondida: o que está por trás destes movimentos de desocupação da área? 

Para seguir o raciocínio sem cair em armadilhas, é necessário um esforço para situar:

  1. Qual o projeto de desinstitucionalização dos pacientes psiquiátricos?
  2. Qual a resposta do Estado às vítimas das internações compulsórias da hanseníase?
  3. Qual a proposta de preservação deste patrimônio material e imaterial?
  4. Como esta instituição pode colaborar com o desenvolvimento da comunidade de Itapuã?

Discutir o projeto de desinstitucionalização de pacientes psiquiátricos é fundamental. E não deve ser definido apenas pelas equipes técnicas e gestores públicos. A lei nº 10.216, de 2001, em seu artigo 3º, define que “é responsabilidade do Estado o desenvolvimento da política de saúde mental, a assistência e a promoção de ações de saúde aos portadores de transtornos mentais, com a devida participação da sociedade e da família”. Portanto é fundamental que o controle social, junto ao poder público, participe de decisões importantes para a sociedade e para a vida destes sujeitos que tiveram seus direitos violados, com a mão ou omissão do Estado. Desinstitucionalização é coisa séria e não deve servir como argumento para intervenções que ofusquem a história ou reproduzam velhas práticas autoritárias.

É também séria e grave a forma como os ex-hansenianos estão sendo tratados. Não podemos aceitar que o Estado cometa uma nova violência contra estes sujeitos que foram compulsoriamente retirados do convívio familiar e social. Emociona o relato de uma senhora, residente das “casinhas” do Hospital Colônia Itapuã. Como ela refere, aos 12 anos foi “largada” na instituição. Hoje aos 76, participa de audiências públicas e é porta-voz dos que reivindicam sua permanência naquele local. Infelizmente, por ironia do destino e dos governos, corre novamente o risco de ser retirada compulsoriamente deste local em que construiu laços afetivos e reconhece como seu lar.

A história e a memória do Hospital Colônia Itapuã, das pessoas e famílias que tiveram suas trajetórias alteradas por uma política de Estado, precisa ser reconhecida, lembrada e reparada. Naquela área é fundamental que se constitua um espaço de memória e verdade, que conte para as atuais e futuras gerações, que em determinado momento histórico o estado praticou uma política higienista, que internou compulsoriamente pessoas, retirando-as do convívio familiar e social. É de bom tom civilizatório que aprendamos com o passado, para que não se repitam as injustiças e violências. A preservação desta memória histórica, deste patrimônio sensível, representa um novo destino a este capítulo dolorido de nossa história coletiva. É uma oportunidade para que a sociedade aprenda a lidar com as suas dores e com os direitos humanos. Além disso, contribui para que a sociedade gaúcha conheça as formas de superação das violências e tragédias – há dor, mas também há celebração da sobrevivência e resistência.

Passados mais de 80 anos da fundação do Hospital Colônia Itapuã, é preciso ressignificar essa história, produzir justiça social, preservar a memória e construir laços saudáveis com a comunidade. A área do HCI poderia comportar equipamentos públicos de saúde, como Centro de Atenção Psicossocial, Unidade Básica de Saúde, Unidade de Pronto Atendimento, acolher projetos de geração de trabalho e renda. Poderia comportar a existência dos ex-hansenianos e seus familiares, que desejam ali viver. Uma forma concreta do estado reparar o dano praticado contra estas pessoas que foram submetidas ao isolamento da Colônia é promover a regularização fundiária, garantindo o uso e a posse das moradias que ocupam há décadas. 

Ainda é tempo de lançar luz sobre esta discussão. Ela precisa ocorrer de forma transparente, com envolvimento da comunidade de Itapuã, entidades, instituições interessadas, controle social e garantindo a escuta das pessoas que ali residem, sem ignorar seus desejos e pertencimento. Basta o governador do Estado do Rio Grande do Sul querer.

(*) Pepe Vargas é médico e deputado estadual. Fabíola Papini é psicóloga e assessora do PT na Assembleia Legislativa do RS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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