Opinião
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30 de novembro de 2021
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07:20

Memórias do Bom Fim (Coluna da APPOA)

Toninho do Escaler conta a história de um dos ícones culturais de Porto Alegre (Reprodução/Youtube)
Toninho do Escaler conta a história de um dos ícones culturais de Porto Alegre (Reprodução/Youtube)

Gerson Smiech Pinho (*)

Abrigado pela sombra de jacarandás ou sob a luz do luar, o estabelecimento dispunha de um vasto espaço livre ao seu redor. Isso porque localizava-se às margens da Redenção, um imenso parque no coração do Bom Fim, bairro vizinho à região central de Porto Alegre. Nesse ponto privilegiado, na esquina de um elegante prédio histórico ancorado em uma das extremidades do Brique da Redenção, o icônico bar Escaler manteve suas portas abertas por mais de duas décadas. Durante o tempo que permaneceu em funcionamento, um público bastante heterogêneo e diverso circulou por suas mesas, reunindo acontecimentos que marcaram a história daquele singular reduto do território urbano porto-alegrense.

O registro das memórias que fizeram parte da construção de um espaço em que a cena artística da cidade fervilhou e proliferou por anos a fio não é de pouca importância. Seu valor não concerne apenas a quem pôde conviver de perto com o bar, mas também àqueles que querem conhecer um pouco mais da história de Porto Alegre e dos caminhos trilhados pela produção cultural em nossa cidade. Esta é uma das muitas boas razões para saborear a leitura do livro “Escaler: Quando o Bom Fim Era Nosso, Senhor!” (Editora Ballejo Cultura & Comunicação, 2021). Com uma narrativa agradável e fluida, a obra retoma a trajetória do bar Escaler com base no testemunho de Toninho – como era conhecido Antônio Carlos Ramos Calheiros, proprietário do espaço – feito ao jornalista Paulo César Teixeira.

O Escaler foi inaugurado em outubro de 1982 por Toninho que, na época, era um marujo que havia decidido abrir um negócio em terra firme. Apesar da mudança, um traço da experiência de navegador e da paixão pelo mar foi conservado no novo empreendimento – “escaler” é o nome dado ao bote salva-vidas utilizado nas embarcações para casos de emergência. O local escolhido para abrigar o bar foi uma banca, em uma das extremidades do Mercado do Bom Fim, na qual funcionava a peixaria Guaíba. Em um primeiro momento, o local funcionou como um bar diurno, com lanches saudáveis e cerca de 30 opções de sucos de frutas. Contudo, após pouco mais de um ano de existência, o empreendimento estendeu o horário até a noite, logo conquistando êxito na nova faixa de horário.

Quem inaugurou o espaço de eventos culturais do Escaler foi Giba Giba, um dos principais representantes do ritmo afro-gaúcho, com um show que ocorreu na primavera de 1983. Porém, foi o rock que passou a dominar a programação que veio na sequência. Tal predisposição não era acaso, visto que o bar apareceu no exato momento em que o rock brasileiro ganhava a cena musical no país, com a proliferação de inúmeras bandas, fenômeno que também acontecia em Porto Alegre. Além disso, a década de 80 foi um período de extrema valorização da produção local, não só na música, mas também na literatura, no cinema e no teatro. Todo esse caldo cultural foi produzido naquele momento histórico, para o qual o Escaler contribuiu de forma significativa, concomitante ao final da ditadura militar e da abertura política que se seguiu a ela.

A trajetória do Escaler confunde-se com a própria história da vida cultural de Porto Alegre. Para quem viveu à época em que o bar se estabeleceu, as páginas do livro são recheadas de memórias afetivas. Ali, acompanhamos fragmentos da biografia de Toninho, as mudanças que foram ocorrendo no Bom Fim e um pouco da história de outros espaços da vizinhança, como o bar Ocidente, a Lancheria do Parque, o Cine Baltimore, o Brique da Redenção, o Zé do Passaporte e a rádio Ipanema, que ficava em um casarão na Avenida José Bonifácio. Desse modo, o livro vai pouco a pouco desenhando a paisagem que esses diferentes territórios do bairro compunham, o modo pelo qual foram surgindo, se relacionando e se estabelecendo.

Ao fazer circular suas memórias em livro, o antigo proprietário do bar Escaler possibilita que as histórias ali contadas sejam redescobertas na atualidade ou transmitidas às gerações futuras. Trazer à tona essas lembranças para compartilhá-las com os leitores, em tempos sombrios como os de hoje em que a cultura tem sido tão desvalorizada, funciona como o próprio escaler de uma embarcação, esse bote salva-vidas que permite seguir em trânsito sem naufragar.

(*) Psicanalista, membro da APPOA e do Centro Lydia Coriat

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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