Opinião
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31 de outubro de 2021
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14:09

O sonho chinês e o pesadelo das finanças (por André Moreira Cunha e Andrés Ferrari)

Xi Jinping, presidente da República Popular da China (Xinhua)
Xi Jinping, presidente da República Popular da China (Xinhua)

André Moreira Cunha e Andrés Ferrari (*)

O Sonho Chinês ….

Xi Jinping lidera o “Império do Meio” desde 2012, quando assumiu a posição de Secretário Geral do Partido Comunista da China (PCC) e de presidente da Comissão Militar Central (CMC). Em 2013, passou a ser formalmente o chefe do Executivo, vale dizer, presidente da República Popular da China (PCR). Ele é o líder da quinta geração de burocratas comunistas, os quais assumiram a responsabilidade de colocar o “país em pé” e, com isso, deixar para trás o “século de humilhações”. Para garantir a legitimidade política do PCC, Deng Xiaoping, Jiang Zemin e Hu Jintao colocaram em prática as quatro modernizações e concentraram seus esforços no crescimento da economia, no avanço tecnológico e na transformação das forças militares. 

O seu sucesso parece ser inequívoco, como demonstra o crescente desconforto do establishment dos Estados Unidos e de seus principais aliados. O sonho de um novo século americano, no qual caberia à China o papel de “sócio responsável”, para usar o termo sugerido em 2005 por Robert Zoellick, então Secretário Adjunto de Estado da administração G. W. Bush, não durou muito. Após a crise financeira global (2007-2009) e com o avanço da polarização política no Ocidente, o mandarinato do PCC percebeu haver uma oportunidade para rever a doutrina de Deng sobre “esconder a sua força e ganhar tempo”. Em sua perspectiva, a decadência das democracias ocidentais abriu espaço para reafirmar o seu projeto nacional.  

Para Xi era chegado o momento de anunciar ao mundo o “sonho chinês”: “Todos têm um ideal, uma ambição, um sonho. Agora estamos falando sobre o sonho chinês … Acredito firmemente que o objetivo de criar uma sociedade moderadamente próspera em todos os aspectos pode ser alcançado até 2021, quando o PCC comemora seu centenário; a meta de transformar a China em um país socialista moderno, próspero, forte, democrático, culturalmente avançado e harmonioso pode ser alcançada até 2049, quando a RPC completa seu centenário; e o sonho do rejuvenescimento da nação chinesa será então realizado.” As datas escolhidas por Xi, assim como o conjunto de sua mensagem, não são fruto de impulsos ou acaso. Para os estrategistas chineses, nas próximas décadas o país consolidará a sua posição como um poder global.

O caminho está traçado, mas a estrada é sinuosa e cheia de obstáculos em potencial. O sucesso econômico produz novos desafios, como a necessidade de garantir equilíbrio energético, ambiental e financeiro. Já o sucesso político está associado à manutenção do controle social e da legitimidade no uso do poder. Para tanto, o PCC deve entregar o que prometeu: o “sonho chinês”. No momento, paira no ar o pesadelo da desorganização financeira. E, com esta, a ameaça de ruptura do delicado equilíbrio social e econômico do país.

Nas últimas duas décadas, a China experimentou o mais intenso processo de acumulação de capital que se tem registro na história das modernas economias de mercado. Entre 1952 e 1999, período demarcado pelo comando de Mao Zedong e, depois, de Deng Xiaoping e seus herdeiros, a participação média da China no estoque global de capital foi de 5,2%, um pouco abaixo da média do conjunto dos países latino-americanos (5,6%) [1]. Os Estados Unidos responderam por 30,4% e os demais países do G7 (Alemanha, Canadá, França, Itália, Japão e Reino Unido) por 31%. Entre 2000 e 2019, a China incrementou sua participação relativa de 7% para 15%; já os EUA perderam a liderança global, passando de 21% para 13%, enquanto o G6 recuou de 28% para 20%, e a América Latina manteve sua posição estagnada em 7%.

O estoque de capital é uma estimativa para o valor da infraestrutura física das economias (estradas, portos, aeroportos, ferrovias, prédios públicos etc.), de suas empresas (terrenos, fábricas, máquinas e equipamentos) e famílias (casas e apartamentos). Ela não resulta de uma apuração direta dos órgãos oficiais de estatística por meio do cálculo do PIB. Nos marcos dos Sistemas de Contas Nacionais, cuja padronização é feita pela Organização das Nações Unidas, há a formação bruta de capital, que representa os gastos agregados com máquinas, equipamentos e construção. Este fluxo anual pode ser acumulado, de modo a caracterizar o valor presente dos investimentos realizados ao longo do tempo, considerando-se a depreciação do capital. Assim, a FBC é um fluxo de gastos, ao passo que o “capital” é um estoque que representa a capacidade produtiva.

Nos anos 2000, a China logrou avançar na construção de uma economia moderna [2], a despeito da eclosão das duas maiores crises econômicas em mais de cem anos: a crise financeira global (2007-2009) e a pandemia da COVID-19 (2020). Em 1980, seu PIB equivalia a 5% da renda. Este patamar atingiu 18%, em 2000, e 64%, em 2020, quando o país já tinha um PIB próximo ao somatório das rendas de Japão, Alemanha, França e Reino Unido. Em paridade poder de compra, que é uma métrica mais adequada para comparações internacionais, a economia da China já é 20% maior que a estadunidense.

Entre 1980 e 1999, a variação anual da FBC da China foi de 8,2% a.a., patamar que se elevou para 11,6% a.a. entre 2000 e 2020. Neste mesmo período, o ritmo de variação do PIB desacelerou de 10% a.a. para 8,7%, respectivamente. Assim, para sustentar níveis de expansão da renda e do emprego acima das médias globais e em linha com as necessidades de garantir estabilidade social e política doméstica, os líderes do PCC redobraram a aposta no modelo de crescimento liderado pelos investimentos. A FBC passou de um padrão elevado em termos internacionais, ou 36% do PIB, entre 1980-1999, para outro excepcionalmente alto na década de 2010: 45% PIB. 

Para viabilizar tal padrão, famílias, empresas não financeiras e governos ampliaram suas dívidas de forma intensa, cujo estoque atingiu 287% do PIB no final do primeiro trimestre de 2021. Para se colocar em perspectiva, tal indicador era de 140% do PIB em 2008, antes da falência do Lehman Brothers; e oscilou na faixa de 100% a 140% do PIB nas três décadas anteriores. Assim, os dados de FBC, estoque de capital e de níveis de endividamento sugerem que o padrão de crescimento liderado por investimentos e dívidas foi particularmente acentuado nos anos 2000.  A expansão acelerada nas dívidas abriu caminho para emergência potencial de crises financeiras. É por isso que os problemas atuais no mercado imobiliário preocupam tanto os gestores chineses.

Nas últimas semanas, analistas de mercado, acadêmicos e formuladores de políticas se debruçaram sobre a crise de liquidez do conglomerado chinês Evergrande. Fundando em 1996 por Xu Jiayin, sua atuação principal é no setor da construção civil, onde desenvolve cerca de 1.300 projetos, em quase trezentas cidades da China. Com o passar do tempo, seus interesses se diversificaram para atividades em setores como turismo, entretenimento, saúde, finanças, agricultura, esportes – onde é proprietária de um dos maiores times do país (Guangzhou Evergrande F.C.) – e automotivo – detendo 45% do capital da Faraday Future, que produz veículos elétricos. Atualmente,  é a responsável direta por 200 mil postos de trabalho e, por meio de suas compras junto a outras empresas, contribui para sustentar 3,8 milhões de ocupações. 

Em 2021, o grupo estava na 122º posição dentre os maiores do mundo no ranking da Forbes e Xu Jiayin aparecia com um dos bilionários listados na  Bloomberg e na Forbes, com um patrimônio líquido de US$ 11,2 bilhões. Todavia, o sucesso corporativo de Xu legou à Evergrande US$ 310 bilhões em dívidas registradas em seus demonstrativos financeiros, o que equivale a 2% do produto interno bruto (PIB) do país, além de compromissos de até 1% do PIB “fora dos balanços”.  Daquele montante, US$ 20 bilhões são em instrumentos emitidos no mercado internacional de capitais. No curto prazo, há US$ 90 bilhões que precisam de pagamento ou refinanciamento. 

A crise atual se originou da combinação entre a expansão muito rápida de sua carteira de ativos com forte alavancagem (quociente entre recursos de terceiros e capital próprio). A Evergrande, assim como o setor da construção em geral, respondeu aos estímulos creditícios, ao padrão de crescimento liderado pelos investimentos, ao desejo dos chineses comuns em realizarem o “sonho” prometido pelo PCC e, também, ao ímpeto especulativo natural em dinâmicas fortemente expansionistas. Seus elos com compradores de imóveis, fornecedores de materiais e serviços, e credores são profundos e diversificados demais para serem ignorados. Assim, por exemplo, há 171 bancos e 121 instituições financeiras não bancárias que são seus credores diretos. Adicionalmente, há 1,4 milhão de apartamentos em construção, cujos compradores já adiantaram pagamentos parciais ou totais. Este último grupo responde por 2/3 dos compromissos totais da Evergrande.

Em 2020, para tentar conter a especulação imobiliária e o excesso de endividamento, o governo chinês implementou limites mais rígidos para as empreiteiras, quais sejam: (i) 70% de teto na relação passivos/ativos; (ii) que a relação dívida líquida/capital não ultrapasse 100%; e (iii) que a relação entre o caixa e as dívidas de curto prazo seja de, no mínimo de 1:1. As novas regras geraram pressão sobre o caixa da Evergrande, que se viu diante da necessidade de interromper novas construções, suspender ou adiar pagamentos a fornecedores e credores e vender ativos mais líquidos. Seu modelo de negócio depende de fontes generosas de financiamento, as quais devem sempre estar dispostas a sancionar suas posições cada vez mais ilíquidas.  Porém, o acúmulo de desequilíbrios, principalmente os níveis elevados de endividamento, a diversificação pouco orgânica dos seus negócios e a opacidade nas informações sobre sua estrutura organizacional e financeira,  geraram forte aversão nos investidores. O preço de suas ações desabou em Hong Kong, com perdas acumuladas de 90% entre janeiro e outubro. 

Em setembro do ano passado, já estava claro que a Evergrande teria dificuldades para se enquadrar. O grupo escreveu ao governo relatando suas apreensões sobre os impactos de uma eventual crise de liquidez, especialmente para os investidores. Evidentemente, aproveitou o ensejo para pedir ajuda. Até porque, os 1,4 milhão de compradores de seus imóveis representam o maior e mais sensível contingente de credores. Não se trata de um problema pequeno ou, tampouco, isolado. As famílias chinesas possuem dívidas que excedem 62% do PIB, em sua maior parte na forma de hipotecas imobiliárias. Por sua vez, 41% dos ativos bancários estão posicionados em créditos imobiliários e 78% do patrimônio das famílias urbanas está concentrado na forma de imóveis. Quase todas as grandes incorporadoras chinesas também estão fortemente endividadas e possuem modelos de negócio semelhantes ao da Evergrande. De acordo com o FMI, as suas dívidas se aproximam de US$ 5 trilhões (1/3 do PIB).

O governo tem administrado a crise de diversas formas: o banco central (Banco do Povo da China) já injetou US$ 15,5 bilhões para irrigar o mercado interbancário; sinalizou que irá encaminhar uma nova proposta de tributação da propriedade imobiliária; bem como afirmou claramente que os donos das empresas deverão utilizar a sua fortuna pessoal para honrar as dívidas corporativas. Até o momento, tais esforços limitaram o escopo da crise imobiliária. Ainda assim, a experiência histórica não nos autoriza a descartar que a China venha a se defrontar com um quadro mais profundo de instabilidade financeira.

No Ocidente, o capitalismo em tempos de finanças liberalizadas e desregulamentas produziu menos investimentos produtivos e incrementos de produtividade , maior concentração de renda e da riqueza e a perda de vitalidade da democracia. Os ricos, particularmente os novos titãs da Gig Economy, acumularam níveis de poder econômico, social e político que põem em risco a manutenção de sociedades livres. No caso da China, a expansão das dívidas contribuiu para consolidar a formação bruta de capital, elevar a produtividade e melhorar a vida da maioria da população. Ainda assim, as desigualdades avançaram e já ameaçam a sustentação política do regime. Neste contexto, crises financeiras como a que se desenha pelo ajuste abrupto no setor imobiliário podem se converter em fonte de instabilidade, o que é intolerável para o establishment do PCC.

Ciente desta realidade complexa, Xi Jinping tem enfatizado a necessidade de garantir que a prosperidade atinja a todos e não somente a um pequeno grupo de milionários e bilionários, conforme analisamos em artigo recente. Para tanto, deverá avançar na tributação progressiva e na estruturação de políticas redistributivas mais amplas. Para entregar o “sonho chinês” diante dos riscos criados pelo mundo das finanças globalizadas e desregulamentadas, Xi Jinping terá de ser mais eficiente do que os seus pares ocidentais na difícil missão de enquadrar os ricos.

Notas

[1] Estimativas dos autores com base nos dados da Penn World Tables (PWT 10.0, July 2021).

[2] Os indicadores na sequência são estimativas dos autores com base em: IMF – World Economic Outlook Database; e World Bank Open Data.

(*) Professores do Departamento de Economia e Relações Internacionais (FCE – UFRGS)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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