Opinião
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6 de outubro de 2021
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08:24

A reinvenção da generosidade: das coisas que aprendemos com Tania Galli (por Luciano Bedin da Costa)

Tania Galli (Acervo pessoal. Foto tirada em 14 de dezembro de 2018)
Tania Galli (Acervo pessoal. Foto tirada em 14 de dezembro de 2018)

Luciano Bedin da Costa (*)

Em 12 de setembro de 2021 completamos dois anos sem nossa querida Tania Galli. Mesmo que sua frágil saúde estivesse há algum tempo sussurrando pelo fim, era difícil acreditar, e muito menos aceitar, a dura verdade do fato. Quando éramos crianças acreditávamos na imortalidade de nossos pais e entes queridos. Hoje, já adultos, e com algumas perdas nas costas, sabemos o quão fina é a espessura de uma vida, ainda que para nossos amores a possibilidade da morte continue por vezes impensável. 

Psicóloga, professora do Instituto de Psicologia da UFRGS e uma das fundadoras do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional desta mesma universidade, Tania Galli Mara Fonseca, ou a “professora Tania”, como era carinhosamente chamada pelos nossos técnicos e estudantes, marcou sua presença pela generosidade, qualidade que deveria ser uma condição humana, mas que infelizmente não o é. A palavra generosidade decorre da partícula latina gens, atribuída ao gesto de gerar ou fazer nascer. Para além do sentido corriqueiro que a coloca como uma dádiva ou doação, a generosidade é antes de tudo uma nascente, um corpo de passagem para algo ou alguém. A contrapelo de uma filantropia moral e subjetiva, em que um dá e o outro simplesmente recebe, com Tania Galli aprendemos que a generosidade é um compromisso ético que se atualiza a cada nova relação. Tania era de fato muito generosa com colegas e, principalmente, com estudantes, uma generosidade que não cobrava do outro seu preço, mas que nos convocava a fazer junto (gosto muito do verbo convocar, uma vez que nele está contida a voz e o fazer com). Creio que, como eu, muitas pessoas tiveram a alegria de serem convocadas por Tania em algum momento de suas vidas, seja para participar de suas pesquisas, ministrar uma aula, compartilhar um seminário, apresentar um trabalho, escrever um texto, organizar um livro e tantas outras coisas que marcam uma vida acadêmica e profissional. O certo é que sua voz generosa convocava um punhado de gente. 

Generosas eram também suas aulas, na forma como compreendia a experiência da transmissão, sabedora que uma professora transmite bem mais (talvez bem menos) do que os objetivos contidos nos planos de ensino. Nas aulas de Tania éramos cúmplices no nascedouro de um pensamento, na forma como fazia cintilar algo de um texto ou autor conectando-o ao acontecimento presente da própria aula. Suas aulas eram como largos e longos abraços, verdadeiros exemplos de uma generosidade em estado maior. Nestes abraços-aula cabiam seus livros e autores amados, uma grande bagagem de coisas lidas, escritas e pensadas, as quais não se furtava em nos oferecer. Em seus últimos seminários, ministrados às quartas-feiras de manhã no Hospital Psiquiátrico São Pedro (HPSP), testemunhávamos seu respeito ao espaço, ao tempo e às tantas vidas invisibilizadas pela violenta história manicomial do nosso país, vidas que se misturam aos rangidos do velho assoalho, às paredes úmidas e descascadas, à gélida corrente de ar que se envereda por frestas de janelas para sempre emperradas. Com a “professora Tania” aprendemos que a generosidade pressupõe a sensível compreensão de que cada coisa, sujeito ou vida tem seu próprio tempo para despertar, e que nosso gesto enquanto professoras talvez seja o de oferecermos este tempo de espera a quem nos acompanha. Mas a generosidade de Tania nos ensinava também da urgência, de que, enquanto professores e professoras, necessitamos estar suficientemente sensíveis ao momento único e urgente em que o outro acorda ou parece querer acordar, ao mágico instante em que os olhos de uma estudante brilham, ao centésimo de segundo da palavra quase proferida e que retorna a sua boca, ao gesto deliciosamente torto de seu corpo que anseia por falar, mas cuja timidez a impede de fazê-lo. É neste momento de urgência que nossa intervenção se torna talvez mais necessária, fazendo nascer algo em alguém. 

Gilles Deleuze, filósofo com o qual Tania muito trabalhou, dizia que aprender é antes de tudo um ato de leitura, que aprendemos um ofício ou mesmo uma profissão quando nos tornamos bons leitores de signos. Para nos tornarmos escultores, por exemplo, é necessário que sejamos bons leitores dos signos que se engendram à pedra ou à madeira a ser talhada. Uma dançarina precisa ser uma arguta leitora dos signos que o seu corpo emite no contato com os signos do corpo do outro, com o pulso e o intervalo de uma música, com a força da gravidade que impõe peso e leveza a tudo o que toca ou se relaciona. Uma contadora de histórias necessita estar atenta aos signos emitidos pelos pequenos ou grandes corpos que se encontram ao seu redor, dispostos, ou não, a escutá-la, atenta à ancestralidade de sua própria língua, às palavras que leu ou que escutou, e que, a cada nova contação, recebem uma nova chance de vida. Para que nos tornemos boas e bons psicóloga(o)s precisaremos ser leitora(e)s atenta(o)s aos signos que se entremeiam no encontro com o outro, de signos que se revelam e que se escondem na superfície dos corpos, sejam estes de um sujeito, de um grupo ou mesmo de uma instituição. Nisto, os abraços-aula de Tania eram inigualáveis. 

Ao lado da docência, Tania Galli nunca deixou de revelar seu amor pela pesquisa. Trago aqui Roland Barthes, autor de sua admiração, quando nos diz há uma idade em que ensinamos o que já sabemos, idade em que nos ocupamos a transmitir aos estudantes o resultado de nosso esforço amoroso para com os livros, autores e autoras estudadas. Entretanto, com um pocado de sorte e paciência, é possível que consigamos chegar a uma segunda idade em que o desconhecido se torna nosso maior saber, idade em que nos ocupamos a ensinar o que não ainda sabemos, gesto a que Barthes chama de pesquisar.  Nesta direção, a pesquisa passa a ser uma espécie singular de bordado que se faz em nós através do tempo, efeito de múltiplos encontros, acadêmicos ou não, os quais reconhecemos, significamos e atribuímos valor. Quem teve a sorte de ser orientada ou orientado por Tania, ou de estar ao menos em uma banca de mestrado ou doutorado com ela, é testemunha da força com que suas palavras atingiam a todas e todos, preenchendo cada canto ou aresta da sala. Atrevo-me a dizer que este era o chão em que Tania melhor se movimentava, que nos momentos de qualificação e de defesa de mestrado ou tese, ela se mostrava quase que inteira. Suas arguições eram verdadeiros acontecimentos ético-estéticos, redigidas e lidas de modo incomparável. Lembro com nitidez da última banca que estive com ela, em meados de 2019. Já um tanto fragilizada, Tania pediu que eu a buscasse em sua casa para que fossemos juntos à universidade. Aquela breve viagem, que não deve ter durado mais do que 20 ou 30 minutos, continua em mim muito viva e presente (algumas de nossas memórias são como corridas de taxi não finalizadas). Lembro como se fosse hoje das pausas entre uma frase e outra, da lenta e calma curiosidade em querer saber como estava minha família e outras coisas do gênero. Há pessoas que, confrontadas com a derradeira angústia, não conseguem sair da vertigem de seu próprio mal-estar. Tania definitivamente não era uma destas pessoas. Naquela breve viagem nos comunicamos muito, principalmente quando as palavras nos faltavam. Então, como de praxe em nossas conversas, perguntei sobre a escrita, algo que definitivamente era uma de suas maiores paixões. Com um tom de voz contundente mas suave, Tania me respondeu: “Eu sinto que não vou durar muito tempo. Por isso tenho cada vez mais urgência por escrever”. 

Releio “Túmulo e Palavra: o ‘After Life’ para prolongar um último toque com a ponta dos dedos”, texto que acabou por se tornar o último a ser publicado em um livro. Dedicado à memória de seu companheiro Paulo, com quem viveu amorosamente por décadas, este ensaio nos revolve pela urgência da primeira à última frase. Encontro no título da seção inicial a pergunta que me acompanhou ao longo desta singela homenagem: “Por que e para que escrever nossas perdas?”. Não tenho aqui a pretensão de responder com exatidão tal pergunta, até porque na perda a exatidão é justamente o que nos falta. O máximo que consigo elaborar é que determinadas perdas, como a de Tania Galli e de pessoas que tanto nos inspiraram com suas generosas escritas, convocam-nos a querer escrever com e a partir delas. Escrevemos, talvez, como retribuição a tanta generosidade que nos foi ofertada. Com outras perdas simplesmente choramos, silenciamos, não conseguimos escrever absolutamente nada. 

(*) Psicólogo e professor da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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