Opinião
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21 de setembro de 2021
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07:24

Uma psicanalista junto à morte (Coluna da APPOA)

Catherine Millot, autora de “Un peu profond ruisseau...” (Ed. Gallimard, 2021) (Reprodução/Youtube)
Catherine Millot, autora de “Un peu profond ruisseau...” (Ed. Gallimard, 2021) (Reprodução/Youtube)

Alfredo Gil (*)

“Un peu profond ruisseau…” (Ed. Gallimard, 2021) é o título do último livro da psicanalista francesa, Catherine Millot. Contaminada pelo vírus da Covid-19 no ano passado, às vésperas do confinamento total, ela relata seu adoecimento e o modo como os sintomas expandiram-se progressivamente se apossando do seu corpo. O que parecia inicialmente uma simples rinofaringite evolui rapidamente para a febre e para uma intensa fatiga. O quadro clínico se agrava. Esgotada, ela constata uma imobilidade física importante, a ponto de ser hospitalizada num serviço de reanimação, sob perfusão durante três semanas. Do leque de recursos terapêuticos medicais, ela escapará do coma artificial, que, às vezes, pode ser prescrito.  

De retorno a casa, o protocolo obriga ao isolamento durante dez dias, tendo que manter-se à distância de sua companheira. Várias semanas de convalescença serão necessárias para que ela seja capaz de executar gestos cotidianos banais.

Se a pandemia, sobretudo no início, alastrou o medo nas relações entre todos, tendo em vista o caráter fatal da doença, temos aqui o relato de uma experiência que faz contraponto à atitude geral face à morte. Escreve Millot “Me encontrei sozinha com a ideia de que talvez eu morresse (…)” e acrescenta: “(…) o que me deixava estranhamente serena (…) me surprendeu não ter nenhum medo de morrer”. A ideia de “morrer sozinha, sem nenhum familiar para dar a mão”  não lhe afetava.  “Morrer sozinha”, para a autora, é um pleonasmo: “a morte é um affaire solitário”.

Ela insiste que, durante este período, a solidão e o risco de morte não a paralisaram nem a angustiaram. Ao contrário, sentiu-se tomada por “ uma abertura infinita ao mundo. Inteiramente exposta”. A psicanalista evoca uma atitude de “distanciamento contemplativo” para com os outros e para consigo mesma. Com efeito, este olhar contemplativo a transportou fora do seu eixo subjetivo a tal ponto que o relato do seu estado de saúde, inclusive durante a hospitalização, não se dá desde o seu próprio ponto de vista, como alguém que se vê no espelho, ou seja, de modo reflexivo. 

Na verdade, é como se Millot fosse informada do que se passa com ela sempre através dos outros. A doença invade violentamente seu corpo. O leitor é surpreso de constatar que a descrição da evolução mórbida deve-se aos relatos das pessoas que se aproximam dela – a vizinha que está inquieta por ela, o médico apavorado, as enfermeiras que se ocupam dela. Ela padece fisicamente mas se entrega subjetivamente, e não reage. Sem resistência “entreguei-me às mãos dos outros”. Uma tal posição subjetiva lhe fornece a ocasião de retomar seu interesse antigo pelo gozo das místicas no qual tornar-se oferenda é a condição para sua realização: “não ser Nada para que o Outro seja Tudo”.

Enquanto os outros se agitam e se preocupam com sua saúde, ela parece alhures, se recordando, por exemplo, de sua viagem com Lacan a Palermo, estando diante do afresco “Il trionfo della morte”. Esta apresenta-se, então, como uma das formas de sublimação da morte tratadas pela autora, para além da simples banalidade de um corpo que cessa de existir. 

Ela discorre, assim, sobre a lembrança de diferentes momentos de sua vida em que a finitude, como pensamento ou como perigo real, ocupou sua existência. Desde o nascimento, quando o médico antecipou e preveniu sua mãe do risco de que ela nascesse morta, passando por uma tuberculose na infância, um grave acidente de carro quando adulta, ou um sonho de adolescência no qual havia sido condenada à pena capital sem conhecer a razão e que, ao aceitar a execução, a angústia e a revolta cedem ao alívio. Paradoxalmente, o drama contido nessas experiências limites leva Millot a designá-las como momentos de renascimento. 

Partindo daquilo que chama de “o veredito da morte inaugural”, ou seja, do fato de que ela estava predestinada a “nascer-morta” até sua recente hospitalização, que motivou o livro em questão, a autora progride numa “aproximação tranquila com a morte”, aos 76 anos, e afirma ter atingido o “esgotamento do sentido de uma busca” diante dos enigmas pendentes há tantos anos. 

Freud, em 1915, a respeito da morte, retoma o adágio que diz  “se tu queres manter a paz, estejas pronto para guerra” sugerindo que “se tu queres poder suportar a vida estejas pronto para aceitar a morte”. Catherine Millot o realiza, e vai mesmo além. Livro importante –  que considera que a vida deve também seu valor a sua finitude –  para uma época em que o falecimento de tantos tem sido reduzido a uma contagem de corpos depositados abaixo da terra. 

(*) Alfredo Gil é psicanalista em Paris; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e da Association Lacanienne Internationale (ALI). E-mail: [email protected]  

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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