Opinião
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16 de agosto de 2021
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09:36

São 521 anos de Genocídio dos Povos Indígenas e 521 anos de Resistência dos Povos Indígenas. De que lado você está? (Por Mariana S. Gomes)

Após décadas de exploração econômica em suas terras e pela perda da terra para muitas comunidades, realidade dos povos indígenas no RS é marcada por exclusão e pobreza. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
Após décadas de exploração econômica em suas terras e pela perda da terra para muitas comunidades, realidade dos povos indígenas no RS é marcada por exclusão e pobreza. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Mariana Selister Gomes (*)

“Somos Daiane Griá Kaingang”! É como termina a Nota, feita pela Articulação dos Povos Indígenas da Região Sul (Arpinsul) e pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), em Repúdio ao brutal assassinato da menina Daiane Kaingang, de apenas 14 anos. Eu quero aqui somar minha voz e ecoar que “Somos Daiane Griá Kaingang” – é o mínimo que devemos, todos, fazer, humildemente: manifestar nossa indignação, apoiar a luta e demonstrar nossa solidariedade aos Povos Indígenas. Como mulher, compartilho do medo constante de violação dos nossos corpos, em uma sociedade machista. Como branca, sinto-me envergonhada por fazer parte de uma sociedade racista.

Queremos justiça e queremos o fim desse bárbaro genocídio! E você? 

Se você não se sentiu indignado/a, revoltado/a, profundamente triste e sensivelmente solidarizado com os Povos Indígenas, com o Povo Kaingang e com a família de Daiane, você já perdeu a sua humanidade. Se você sentiu tudo isso, resta se perguntar: o que eu posso fazer? Como sou parte disso? 

Todos os brasileiros são parte desse brutal assassinato. Ou melhor, todos os seres humanos, porque é uma questão de Direitos Humanos. Esse crime é um crime de ódio às mulheres e aos povos indígenas. Esse ódio tem 521 anos e vem crescendo nos últimos tempos. Esse crime é uma horrenda manifestação do machismo, do racismo e da colonialidade. É o culminar dos discursos de ódio, propagados, inclusive, por representantes eleitos – que deveriam proteger e valorizar todos os povos que habitam o Brasil, sobretudo, os povos originários. Em que você votou para o legislativo e para o executivo? Seus representantes professam discursos de ódio às mulheres e aos indígenas? Ou defendem as minorias? Seus representantes protegem as florestas e as populações que nelas habitam? Seus representantes fazem políticas públicas para os povos indígenas? De que lado você está?

A violência começa no discurso e culmina na morte. Ouso dizer que esse crime é uma arma de guerra contra os povos indígenas da maior terra indígena do Rio Grande do Sul – arma permitida e fomentada por quem compactua com o ódio. Não é só em terras distantes que o estupro e o assassinato de mulheres são terríveis armas para subjugar um povo. Aqui ao lado isto também está acontecendo (e é com profundo pesar que escrevo esse texto). Armas letais que começam na vontade de subjugar, de humilhar, de espoliar as terras, de enriquecer às custas da dominação. Armas que começam nos discursos de ódio e culminam na morte.

As Ciências Sociais estudam, desde seu surgimento como Ciência, no século XIX, as diferentes formas de violência (entre outros problemas sociais). Para explicar e superar a violência, os/as Cientistas Sociais criam conceitos abstratos em diálogo com dados empíricos da realidade social. Conceitos e dados, científicos, que servem para compreender os problemas sociais e transformá-los. Não é à toa, que quem propaga discurso de ódio e quer dominar, explorar e subjugar, não gosta das Ciências Sociais. E, por isso mesmo, nós resistimos. E estamos ao lado dos Povos Indígenas. 

Vamos, então, brevemente, apresentar alguns conceitos e dados. Enquanto isso, você decide: De que lado você está? E os seus representantes?

Quando os portugueses ocuparam o território que hoje é o Brasil, estima-se que havia de 4 a 10 milhões de pessoas vivendo aqui, hoje são apenas 816mil indígenas, representando menos de 0,5% da população. Isso foi o resultado da colonização, baseada em violência, exploração e dominação. Isso se chama Genocídio. 

Ao fim da dominação portuguesa, mantivemos padrões estruturais de opressão dos povos indígenas. A preocupação do Estado com os povos indígenas iniciou-se, apenas, no século XX. A demarcação de terras foi assegurada, apenas, pela Constituição Federal de 1988. Até hoje, a demarcação é desrespeitada e enfrenta ameaças de retrocesso, como o Projeto de Lei 490/2007. As terras indígenas são invadidas, tensionadas e ocupadas. Mulheres, lideranças e ativistas são mortos. Os povos indígenas são constantemente atacados. Só em 2019, 113 indígenas foram assassinados. Em 2021, o Brasil foi citado em Relatório da ONU, por risco de Genocídio dos Povos Indígenas. Há poucos dias, em 09 de agosto, Dia Internacional dos Povos Indígenas, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil denunciou o Presidente Jair Bolsonaro, ao Tribunal Penal Internacional, por crimes contra a humanidade, contra o meio ambiente e por incitação ao genocídio dos povos indígenas. A essa manutenção de opressões desde o período colonial, chamamos Colonialidade. 

A Colonialidade é a manutenção de relações poder coloniais, até os dias atuais. Ela se manifesta e se propaga em termos econômicos, como demonstra a Teoria da Dependência (através de autores como Teotônio dos Santos, Vânia Banbirra e Ruy Mario Marini), ao evidenciar que o Pacto Colonial (onde as colônias produziam matérias-primas e compravam produtos industrializados) vem sendo atualizado até hoje. Ela se manifesta e se propaga em termos culturais, políticos e subjetivos, como demonstram as Teorias Pós-Colonial e Descolonial (através de autores como Anibal Quijano, Edgardo Lander e Stuart Hall), ao analisarem a manutenção do racismo contra a população negra, indígena e migrante, até os dias de hoje, como parte central das sociedades ocidentais. Ela se intersecciona com as opressões de gênero, como demonstra Lélia González, ao falar da importância de um feminismo afro-latino-americano; tema que é desenvolvido, mais recentemente, na perspectiva da Colonialidade de Gênero (através de autoras como Maria Lugones e Ochy Curriel) e no conceito de Interseccionalidade (através de autoras como Kimberlé Crenshaw e Patrícia Hill Collins), ao comprovar que mulheres negras e indígenas são as maiores vítimas de violência, as que recebem os menores salários, as que estão mais excluídas dos espaços de poder político, e as que mais resistem, de diferentes formas. 

E precisamos sim falar de Gênero (relações sociais entre homens e mulheres, construídas historicamente e marcadas por desigualdades, hierarquias, estereótipos e papéis sociais), de Machismo e de Masculinidade tóxica (supervalorização de uma figura mítica de macho e de valores de violência e dominação), de Misoginia (ódio às mulheres) e de Patriarcado (estrutura de poder que exclui e inferioriza às mulheres). São os corpos das mulheres aqueles sob os quais a violência é exercida, há milhares de anos, em diferentes culturas.

Já quando eu finalizava esse texto, tive notícia de outro crime brutal contra uma menina indígena. Não consigo nem sequer mencioná-lo. Somos todas Raissa da Silva Cabreira Guarani Kaiowá. Parem de violar e matar nossos corpos de meninas e mulheres! Chega!

O Racismo e o Machismo se perpetuam, também, através da Violência Simbólica (conceito desenvolvido por Pierre Bourdieu), da Branquitude (conceito elucidado por Maria Aparecida Bento) e da Masculinidade Hegemônica (conceito debatido por Raewyn Connell). Quando você corrobora com discursos que inferiorizam e estigmatizam mulheres, negros e indígenas,  você está sendo agente de Violência Simbólica – uma violência cultural e discursiva, que quem exerce não quer ter consciência que a exerceu, uma violência por conivência. Quando você é branco/a e não reflete sobre a sua brancura e o que isso significa em uma sociedade racializada e racista, quando você não questiona seus privilégios sociais de branco, quando você não escuta as demandas dos movimentos negros e indígenas, você está reproduzindo a Branquitude – um tipo de racismo por negligência ou omissão. Quando você é homem e não reflete sobre a sua masculinidade e o que isso significa em uma sociedade machista, quando você não questiona seus privilégios sociais de homem, quando você não escuta as demandas dos movimentos feministas, você está reproduzindo a Masculinidade Hegemônica – um tipo de machismo por negligência ou omissão.

Os padrões históricos de poder colonial e patriarcal seguem se reproduzindo – por ação, conivência ou omissão. Os Povos Indígenas continuam resistindo! Chega desse Genocídio! As mulheres seguem resistindo! Chega de violarem nossos corpos! De que lado você está? Sejamos todos Daiane Griá Kaingang e Raissa da Silva Cabreira Guarani Kaiowá e clamemos por justiça!

 Meus mais profundos sentimentos às Mulheres Indígenas. 

(*) Mariana Selister Gomes é Historiadora, Mestre e Doutora em Sociologia. Professora do Departamento de Ciências Sociais e dos Programas de Pós-Graduação em Ciências Sociais, em Relações Internacionais e em Estudos de Gênero da Universidade Federal de Santa Maria / UFSM. É Coordenadora do Curso de Bacharelado em Ciências Sociais da UFSM e Coordenadora do Programa de Extensão GIDH – Gênero, Interseccionalidade e Direitos Humanos (@programaGIDH), vinculado ao Observatório de Direitos Humanos da UFSM.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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