Opinião
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5 de agosto de 2021
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09:52

Quando o Estado legitima a violência contra as mulheres (por Alessandra Andrade e Sibele Lemos)

Ato pede revogação da Lei de Alienação Parental, em setembro de 2017. Foto: Maia Rubim/Sul21
Ato pede revogação da Lei de Alienação Parental, em setembro de 2017. Foto: Maia Rubim/Sul21

Alessandra Andrade e Sibele Lemos (*)

Não é novidade para nós mulheres que conforme nossos direitos avançam também evoluem as formas de obstaculizar o acesso a esses direitos, realizados por grupos masculinistas e conservadores que sequer imaginam perder seus privilégios presenteados pelo patriarcado. Como dizia Simone de Beauvoir: “Nossos direitos não são permanentes, você tem que manter-se vigilante todos os dias.”

Foram muitos anos de luta e de sofrimento da Maria da Penha, que buscou justiça pelas violências sofridas, representando um marco histórico na vida das mulheres, pois até então as violências eram minimizadas ao ser criada a Lei 11.340/2006 – Lei Maria da Penha, o ordenamento jurídico brsileiro passou a tipificar as violências sofridas pelas mulheres e prever a punição adequada para coibir atos de violência doméstica contra a mulher, sendo considerada pela Organização das Nações Unidas (ONU) uma das três mais avançadas do mundo. Em 2008, uma grande campanha tentou, sem sucesso, determinar a inconstitucionalidade dessa lei. E como uma forma de obstaculizá-la, em 2010, foi aprovada às pressas Lei n° 12.318/2010, Lei de Alienação Parental (LAP). Aprovada sob a falácia da lei protetora dos vínculos familiares, teve entre seus próprios defensores a afirmação de ser de extrema importância no manejo da Lei Maria da Penha, já que essa tinha encorajado às mulheres a saírem de relacionamentos abusivos e violentos e denunciá-los como forma de protegerem a si e aos seus filhos e/ou filhas.

Também precisamos informar que a ideia de alienação parental foi criada apartir da opinião pessoal de um médico que defendia pedofilia como algo importante para o desenvolvimento da humanidade e até o presente momento estas ideias não apresentam reconhecimento cientifico que valide a sua utilização no mundo, a não ser como instrumento para defender abusadores e agressores e desqualificar os testemunhos das vítimas de violencia doméstica e familiar e de abusos sexuais intrafamiliares, visto que este foi o propósito da sua elaboração.

Entende-se por alienação parental toda interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos pais, por avós ou por qualquer adulto que tenha a criança ou o adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância, sendo que essa ideologia foi transformada em lei, aqui no Brasil.

Com o advento da Lei de Alienação Parental a proteção às crianças e adolescentes foi dissipada, haja vista ser o principal instrumento de defesa de agressores/abusadores, quando possuem filhos em comum com suas vítimas, ou ainda, sejam os genitores de suas vítimas. Ou seja, quando uma mulher denuncia violência doméstica ou agressão contra seus filhos, a defesa do autor destas agressões é utilizar-se da LAP para acusar essa mulher/mãe de estar cometendo atos de alienação parental, especificamente o referido no art. 2o VI – apresentar falsa denúncia contra genitor, contra familiares deste ou contra avós, para obstar ou dificultar a convivência deles com a criança ou adolescente; e VII – mudar o domicílio para local distante, sem justificativa, visando a dificultar a convivência da criança ou adolescente com o outro genitor, com familiares deste ou com avós. Não é preciso dizer que em nosso judiciário extremamente machista, essa estratégia legal foi muito bem acolhida. Mas sendo as denúncias verdadeiras, não corre-se este risco, você deve pensar. Ledo engano. Assim que uma acusação de alienação parental é incluída num processo, todo movimento, toda investigação direciona-se a comprovar os tais indícios de alienação, já que conta com a previsão legal de tramitação prioritária e as denúncias de violência são colocadas em segundo, ou último, plano, quando não são simplesmente arquivadas ou convertidas em denunciação caluniosa contra a mulher/mãe.

Também não é segredo a dificuldade em se comprovar crimes de agressão e violência sexual, seja contra mulheres, seja contra crianças. Apesar do entendimento de que a palavra da vítima é prova incontestável, na prática não é assim que funciona. Para o judiciário raras são as provas incontestáveis, na verdade sequer aceita-se a possibilidade de discutir qualquer fato que não seja a alienação parental. Esta ideologia está tão fortemente arraigada no judiciário que os poucos laudos que apontam a existência de violência contra mulheres/mães e crianças são ignorados nos processos, e ainda acontece de juiz(a) solicitar a exclusão dos autos.

E também como movimento para impedir a aplicação efetiva da lei Maria da Penha e a proteção das mulheres/mães, Identificamos os Enunciados FONAVID, que reforçam o contrário do que prevê a Lei pois se pronunciam:

ENUNCIADO 3: A competência cível dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher é restrita às medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha, devendo as ações relativas a Direito de Família ser processadas e julgadas pelas Varas de Família.

Fragmentando a mulher em vítima de violência doméstica no Juizado Especializado e a mulher conflituosa na Vara de Família que quer tumultuar o processo e prejudicar este “bom pai”(seu agressor) de conviver com a(o) filha(o).

Este descrédito e distorção das denúncias além de diminuir consideravelmente os números de denúncias, ainda induz a parte das mulheres/mães que denunciem acabem retirando as queixas por contas das ameaças que sofrem ao longo dos processos, perpetradas principalmente, por magistrados e membros do Ministério Público, sendo a mais grave delas, a perda de guarda, de contato e ameaça de perda do poder parental. Como dito por um juiz da 5a Vara de Família de Porto Alegre/RS “[…]a gente tem uma acordo lá, com o pessoal da violência doméstica e juizado da infância, em caso de medida protetiva eles têm que resguardar o direito de visita DO PAI[…]”. Este “acordo” faz com que seja mantida a obrigação da vítima em conviver com seu agressor/abusador. Ou seja, homens que agrediram suas ex-companheiras, mesmo com as restrições das medidas protetivas, têm o direito legal a manter o contato com elas, entrar nas suas casas e ter acesso aos filhos em comum do ex-casal.

Ocorre que mesmo que a mulher/mãe tente romper o ciclo de violência e se organize para não ter contato com este agressor, ele mantém as agressões exatamente onde mais lhe fere a mulher/mãe, através dos filhos. Quando não consegue a guarda definitiva, recebe como prêmio pelo seu perfil agressor a manutenção e garantia do convívio com os(as) filhos(as) e até mesmo a guarda compartilhada, pois em diversas decisões dos Tribunais de Justiças do Brasil desembargadores decidem que agredir a mulher sem ameaçar os filhos não tira o
direito a guarda compartilhada:

“Um marido que agride sua mulher, mas sem colocar em risco a integridade dos filhos, ainda tem direito à guarda compartilhada das crianças após a separação, mesmo que existam graves desavenças entre o ex-casal. O entendimento é da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao aceitar Recurso Especial de um pai contra a ex-mulher, que detinha a guarda unilateral de suas duas filhas” (via Consultor Jurídico).

Juridicamente, esse indivíduo sabe que não tem direitos sobre a ex- esposa / ex-companheira, mas sabe que retém (e manterá até a maioridade) o poder e os direitos sobre os(as) filhos(as). Por isso, ele os transforma em objetos para dar continuidade ao abuso e à violência. Ele sabe que essa mulher/mãe será capaz de calar-se, tolerar, ceder e continuar suportando todas as violências como única possibilidade tentativa de proteção ou até mesmo de convivência com seus filhos e filhas. Usar crianças para infligir dor e controle às mães é uma das formas mais extremas e brutais de violência de gênero. E a esse tipo de violência que se chama Violência Vicária, legitimada pelo judiciário e protegida pelo segredo de justiça que envolve esses processos. Definida pela psicóloga clínica Sonia Vaccaro, como a substituição de um indivíduo por outro no exercício de uma função. Quando aplicada à violência, representa o ato de agredir uma pessoa em substituição a outra, que é o objetivo principal. O termo violência vicária foi incluído no Pacto de Estado contra a Violência de Gênero na Espanha.

Essa é a principal violência que desestrutura completamente as mulheres dentro dos trâmites processuais, acompanhada da violência institucional que atua conjuntamente, desqualificando a palavra das vítimas, ignorando provas e o pior, transformar processos com “insuficiência de provas” em processos de falsas denúncias ou, ao arquivá-los, processar as vítimas por denunciação caluniosa. Ou seja, o Estado culpabiliza as vítimas nos crimes em que Ele próprio foi omisso e incompetente na produção e condução das provas.

Esse benefício faz com que situações de violência sejam acolhidas pelo judiciário como simples conflitos familiares. E cada vez que se põe em dúvida a palavra de alguém que teve a coragem de quebrar o ciclo de medo, vergonha e culpa que envolvem as violências doméstica e sexual, seja como vítima ou testemunha, fomentamos o silêncio das demais. O mesmo silêncio que depois achamos ser uma prova da sua má índole. Os abusadores alimentam-se dessa equação perversa que os protege, assim como da inércia da justiça. E seguem para a próxima vítima com a certeza de que sairão impunes. Até quando vamos compactuar com isto?

[O parágrafo final é uma adaptação do texto de Paula Cosme Pinto no artigo #MeToo. Queriam nomes? E agora, de que lado estão?]

(*) Coordenadoras do Coletivo Voz Materna

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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