Economia
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1 de agosto de 2021
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09:45

Quando a poeira baixar…. (por Flavio Fligenspan)

Desemprego elevado e queda de renda agravam problema da desigualdade. (Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)
Desemprego elevado e queda de renda agravam problema da desigualdade. (Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)

Flavio Fligenspan (*)

Às vezes, no meio de uma confusão, é difícil enxergar alguns movimentos que podem moldar um novo ambiente. Vale a comparação com um fenômeno natural, como uma tempestade de areia no deserto, que rearranja a forma das dunas e revela uma nova paisagem. Isto se verifica na política, na economia e nas relações sociais em geral. Só quando a poeira baixa se tem clareza dos fenômenos que estavam acontecendo e que acabaram por gerar uma nova realidade.

Sobre a confusão: refiro-me à enorme crise política, econômica e social que vivemos desde 2013 no Brasil, começando pelas jornadas de junho daquele ano, até hoje não completamente esclarecidas quanto à sua origem, natureza, apoios e interesses. O fato é que ali se conformou um ponto de ruptura institucional que desorganizou a vida do país e que ninguém sabe quanto tempo ainda vai durar e quanto estrago ainda vai produzir. Seguiu-se àquele momento a disputa eleitoral renhida de 2014; a recessão de 2015 e 2016; o impeachment de Dilma; Temer “empurrando com a barriga” a economia e “empurrando goela abaixo” suas reformas; a eleição de Bolsonaro em 2018; a crise política e o desmonte institucional a partir de 2019; e a crise sanitária e econômica em 2020-2021. Não é pouco para uma democracia imatura e frágil. Daqui a alguns anos, se for possível uma calmaria, vamos nos admirar de termos passado por tudo isso em sequência.

Sobre os movimentos que podem moldar um novo ambiente: há muitas coisas acontecendo, e deve-se admitir que várias delas nem estão bem visíveis no meio da confusão, mas penso que vale tratar de uma delas, bem clara neste momento. Nunca se discutiu tanto no Brasil o tema que me parece ser nossa marca mais forte como sociedade, a desigualdade. Claro que não é um movimento brasileiro apenas. Pelo contrário, é um debate que tomou conta do mundo a partir da grande crise financeira de 2007-2008 e das consequências das respostas que os governos dos países ricos deram à crise. As camadas mais privilegiadas da distribuição de renda nestes países acabaram saindo muito bem da crise e o ônus ficou na mão das camadas médias e baixas e dos governos, via aumento significativo da dívida pública. O aumento do desemprego e a visível proteção dos interesses dos mais ricos geraram insatisfações de toda ordem e impulsionaram a ascensão de governos populistas de direita, que bem que gostariam de evitar o debate sobre desigualdade.

Mas isto não foi possível e vários autores e organismos de pesquisa produziram estudos sobre o assunto no mundo, inclusive com comparações ilustrativas sobre as diferentes situações de cada país e região. Entre outros, Thomas Piketty é o pesquisador de maior referência neste cenário atualmente no mundo. O Brasil, como um exemplo histórico e extremo de desigualdade de renda, tem destaque na discussão com uma farta produção acadêmica e com um debate relevante na grande imprensa. A pandemia, o retardo do plano de vacinação e suas consequências econômicas, expressas no desemprego elevado e na queda de renda, tornaram o problema ainda mais visível e mais grave. O pouco que se conquistou nos anos 2000 foi rapidamente perdido a partir de 2015, e só não se chegou a uma situação pior neste momento porque o Governo Federal se viu forçado a prover o Auxílio Emergencial. Mas ele já sofreu uma interrupção no primeiro trimestre de 2021 e, retomado em abril, tem data para acabar.

De qualquer forma, a desigualdade de renda, com seus vários matizes, passou a ser tema de debate corriqueiro no Brasil. Estuda-se e discute-se a desigualdade entre homes e mulheres, entre brancos e negros, entre jovens e pessoas maduras, entre habitantes de diferentes regiões, entre pessoas com diferentes escolaridades e entre trabalhadores com diferentes inserções no mercado de trabalho. Todos os recortes interessam e acabam por produzir efeitos colaterais positivos, ampliando o debate sobre o machismo, o racismo e a homofobia, também temas delicados e tradicionalmente “escondidos” na nossa sociedade.

No meio da atual confusão, este me parece ser um aspecto positivo e que mexe em questões de fundo da história do Brasil. O primeiro passo para tratar de um problema tão grave e tão “escondido” é a produção de bases de dados e sua análise estatística. A seguir, vêm os estudos e o debate público amplo, que traz consigo o reconhecimento da questão como algo que incomoda e merece a atenção de todos. Tenho a sensação de que depois de séculos estamos vivendo este momento no Brasil, de elevação do status do problema da desigualdade de renda para um nível tal que não possa nunca mais ser ignorado pela sociedade.

(*) Professor do Departamento de Economia e de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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