Opinião
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15 de agosto de 2021
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15:31

Com quantos Bolsonaros de sucata se inventa um passado e se forja um futuro? (por Eduardo Roberto Jordão Knack e Murillo Dias Winter)

"A história de Passo Fundo está bastante distante de uma epopeia construída pelo MTG". (Foto: Alex Borgmann/Prefeitura de Passo Fundo)

Eduardo Roberto Jordão Knack e Murillo Dias Winter (*)

Nos últimos dias, a sociedade passo-fundense foi surpreendida com a notícia que um grupo de pessoas se organizava para erigir uma estátua de Jair Bolsonaro, atual presidente da República, na cidade. A repercussão – entre o susto, o apoio e a galhofa – foi nacional, sobretudo por trata-se de uma figura não apenas viva, mas com o seu mandato presidencial em andamento. Feito pouco usual nesse tipo de homenagem. O responsável pela organização do monumento, Jabs Paim Bandeira, pretende que a inauguração seja fruto de uma grande celebração com desfiles, discursos e solenidades na presença do próprio do líder político, movimento ainda mais surpreendente diante da calamidade na saúde que vitimou em Passo Fundo 663 pessoas até o momento.

Jabs Paim Bandeira é afamado na cidade. É vereador emérito e nesta mesma semana, no dia 09 de agosto, recebeu da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, a medalha 55ª Legislatura, em homenagem a sua história e contribuição à comunidade local. O responsável pela condecoração é outro político bastante conhecido pela população local, o Deputado Estadual Mateus Wesp (PSDB). Entre outras peripécias, Wesp, enquanto vereador travou uma cruzada contra o uso da linguagem neutra nas escolas e em outro momento de comoção política local, em anos recentes, foi fotografado em cena dantesca: ao mesmo tempo vestia pilchas, erroneamente atribuída aos farroupilhas, e se cobria com uma bandeira do Brasil Império. Qualquer aluno desatento de ensino básico vai reconhecer o erro de sobrepor como parte de um mesmo traje os símbolos daqueles que travaram, em lados opostos, a guerra civil mais longa da história brasileira. No entanto, um olhar mais cuidadoso demonstra outros aspectos. Especialmente que este grupo, diante de sua posição privilegiada na sociedade de Passo Fundo e de seu poder municipal e estadual, acredita que pode manipular as narrativas históricas e as memórias locais em favor de seus interesses pessoais e políticos materializados em uma estátua de sucata com 6 metros de altura. É disso que esse texto trata, dos usos, discursos, manipulações e disputas da história materializada em monumentos em espaço público.

Nos últimos anos os monumentos públicos ganharam destaque na imprensa nacional e internacional. Recentemente, após o assassinato de George Floyd em Minneapolis, nos Estados Unidos, em meio aos protestos que se espalharam pelo mundo, monumentos que faziam referência ao colonialismo e a escravidão foram alvos de manifestantes que empreenderam diferentes ações, desde intervenções críticas, depredações até sua destruição (como no caso da estátua de Edward Colston, um traficante de escravos, na Inglaterra). Os monumentos brasileiros também foram alvo de protestos, especialmente aqueles que se referiam ao passado colonial, como os que homenageavam os bandeirantes em São Paulo. Em 2020 o Grupo de Ação, movimento popular, colocou crânios aos pés das estátuas de Bartolomeu Bueno da Silva e de Borba Gato, denunciando a violência que envolveu o processo de ocupação do país durante todo período colonial. Nesse ano, 2021, ativistas atearam fogo na estátua de Borba Gato, gerando intensos debates entre conservadores e progressistas, com uns defendendo sua conservação, outros apoiando a iniciativa dos manifestantes.

É importante considerar que o debate que polarizou a sociedade sobre conservar ou derrubar esses monumentos tomou uma direção maniqueísta, circulando entre defesa ou condenação dessas ações, impedindo reflexões além dessa oposição. O ato de construir monumentos remonta ao processo de sedentarização humana, quando os homens passaram a sepultar seus mortos ao invés de incinerar, gerando os primeiros monumentos funerários. Não apenas a construção de monumentos é tão antiga, como também é a sua destruição. Ao mesmo tempo em que passamos a construir monumentos, também passamos a destruí-los, com diferentes objetivos e propósitos. Construir/desconstruir monumentos é um fato constante na história da humanidade. Desde a Antiguidade esse movimento de construção/destruição vem ocorrendo.

Quando o faraó Akhenaton, que governou o Egito entre 1353-1336 a.C, foi assassinado por outros sacerdotes, seus monumentos, templos, estátuas, esculturas e outras imagens foram sistematicamente depredadas ou destruídas; durante o período da Reforma protestante na Europa, estátuas, imagens e artefatos de santos católicos foram consideradas formas de idolatria, perseguidos e destruídos; a destruição do Império Asteca pelos espanhóis envolveu a derrubada dos monumentos e templos que simbolizavam a religião e a cultura dos conquistados; os regimes nazista, de Hitler, e fascista de Mussolini também empregaram a construção/destruição de monumentos para legitimar sua ideologia política ou apagar a memória daqueles que não se enquadravam em seus delírios supremacistas.

São vários os exemplos que poderíamos listar para caracterizar esse movimento de construção/destruição dos monumentos ao longo da história. Mais do que debater se devemos conservar ou derrubar certos monumentos, é importante refletir sobre seu sentido para a sociedade. Os monumentos não são objetos vinculados apenas ao passado, eles também são direcionados para o futuro. São objetos que buscam superar o traumatismo da existência, vencer a morte e o esquecimento e legar para gerações futuras ideias, valores e representações que marcam a cultura daqueles que o construíram. Os monumentos que sobrevivem ao movimento de construção/destruição não são restos do passado, sua sobrevivência se deve a grupos que direcionam esforços para sua preservação, selecionando aquilo que se preserva e se destrói. Estão, portanto, mergulhados em relações de poder, conflitos e tensões sociais.

Os monumentos não encerram, portanto, consenso dentro das sociedades em que são construídos. Cabe lembrar Walter Benjamin, que sabiamente percebeu que todo monumento da cultura é também um monumento da barbárie, e, como Edgar Morin alerta, a barbárie não é resultado ou consequência das civilizações, é parte integrante de sua história, e podemos ir mais longe ainda – não apenas é parte integrante, é condição para sua existência. Partindo do que foi exposto, podemos começar a refletir sobre os significados da construção de um monumento ao presidente Jair Bolsonaro em Passo Fundo.

A construção de um monumento que visa homenagear uma personalidade política (um monumento comemorativo) ainda em vida é sempre uma questão complexa e que dificilmente encontra consenso na sociedade, visto que disputas entre diferentes grupos políticos fazem parte de qualquer contexto histórico. Único consenso que pode existir é entre os correligionários ou militantes que encontram afinidade política e ideológica com aquilo que é defendido e/ou representado por determinada personalidade. Cabe pensar, portanto, quais as ideias, ações ou ideologia política que o monumento ao presidente está encerrando em Passo Fundo, e em que contexto social e político ele está inserido.

O contexto histórico que vivemos é devastador. Vivemos uma pandemia que, no momento, ceifou a vida de mais de 560 mil brasileiros, uma crise sanitária sem precedentes, além da destruição de nosso patrimônio ambiental com a Amazônia literalmente queimando, também vemos a volta da inflação, do desemprego e da crise econômica. Vivemos o fim de uma era, o fim de um século XX que se arrasta pelo XXI. O que temos para homenagear nesse quadro? Quais são os valores/ideias ou trabalhos do presidente do Brasil que merecem ser celebrados? A gestão da saúde na pior pandemia que enfrentamos é caótica para dizer o mínimo, alvo de uma Comissão Parlamentar de Inquérito que levantou não apenas os problemas de uma política negacionista impulsionada pelas “fake news” (divulgação de mentiras), mas indícios de casos de corrupção envolvendo compras de vacina.

A figura que ocupa a presidência, bem como sua gestão, assinala uma cisão social profunda, não apenas ressalta, mas estimula (e necessita de) conflitos para sua sobrevivência. Os discursos do presidente, durante toda sua carreira como político, foram permeados de apologias a violência política, de defesa da tortura, de milícias e grupos de extermínio, entre outras falas que provocaram repúdio e repulsa de grupos que defendem os Direitos Humanos, movimentos negros, indígenas, feministas, LGBTQI+, entre outros movimentos, associações e entidades. O bolsonarismo é a manifestação da barbárie de nossa cultura, erguer um monumento em sua homenagem significa estar alinhado com aquilo que tal sujeito representa. Representa, em última instância, uma violência contra quem não está alinhado ao seu circuito ideológico, especialmente se for erguido em espaço público. E, obviamente, sua construção resultará em ações de contestações pelos grupos que se sentem ofendidos, ameaçados e perseguidos por aqueles que defendem tal monumento, seguindo o movimento de construção/destruição que é constante na história da humanidade.

Mais além da construção/destruição de monumentos, demonstração material desse amplo processo, a historiografia, de maneira geral, tem recentemente se voltando com maior frequência para estudar os usos políticos do passado. Ou seja, a compreensão das maneiras pelas quais determinados grupos escrevem, reescrevem, silenciam sobre alguns aspectos enquanto enfatizam outras figuras e eventos específicos com objetivo de validar, fortalecer e justificar projetos políticos no presente com vistas ao futuro. Em função desse processo, o historiador italiano Enzo Traverso afirma que a história é “um campo de batalha”. A metáfora não poderia ser mais certeira. Jabs Paim Bandeira é o orgulhoso organizador das encenações da Batalha do Pulador, combate ocorrido nas cercanias de Passo Fundo em 27 de junho de 1894, durante a Revolução Federalista (1893-1895), que ocorrem anualmente na cidade. A teatralização de uma das batalhas mais sangrentas de uma luta fraticida no Rio Grande do Sul, como faz questão de lembrar o seu idealizador, não se resume a uma mera encenação, mas uma construção de memória com o objetivo de instruir a comunidade local sobre a sua própria história e valores. Para Bandeira, o seu discurso é universal, e toda a comunidade passo-fundense deveria comungar dos mesmos valores e interesses e para aqueles que ainda não compartilham tal visão, ele se encarrega de ensinar. Estes valores, bastante difusos, tem sólidas ligações com o Movimento Tradicionalista do Rio Grande do Sul. 

O mais significativo é que Passo Fundo, no Planalto Médio, pouco ou quase nada tem com essa história de disputas fronteiriças e está bastante distante de uma epopeia construída pelo MTG que justifique essa aproximação. O gaúcho de Bandeira nunca existiu. As figuras históricas que foram apropriadas na construção desse mito não habitaram esse espaço. Antes de ser cidade esse local era território caingangue. No caminho das tropas que transportavam gado para vender em São Paulo e Minas Gerais, os primeiros posseiros ocuparam o território indígena com pequenas lavouras, se dedicavam a criação de animais e o cultivo da erva-mate, em sua imensa maioria eram caboclos, gente pobre e negra. Nenhum deles tem nome e menos ainda estatuária na cidade.

 Com o processo de ocupação sistemática dessa porção do Rio Grande do Sul, em nome de uma determinada ideia de civilização, a região é ocupada mais sistematicamente e junto das grandes propriedades de terra que vão sendo desenhadas na paisagem, as lideranças desse processo tem nome e já se tornaram no presente nome de rua, de escola e de bairro. Fagundes dos Reis, Nicolau Vergueiro, Coronel Chicuta, os homens de posses e de patentes militares permanecem. A escravidão tem pouco espaço e a estátua é de alguém sem nome, apenas a Mãe Preta. Uma única figura feminina, sem nome e uma pessoa escravizada. Nos valores teatralizados e ensinados representado um ideal de cidade, de estado e de mundo, a pluralidade da formação histórica de Passo Fundo não tem lugar. Como já dissemos, estátuas e monumentos são a visão de uma sociedade sobre um determinado ideal de passado, a escolha de determinados grupos de poder sobre aquilo que deve ser recordado, que estrutura e tece a sociedade no presente e indica os caminhos para o futuro.

Portanto, não existe uma narrativa única, exclusiva e inequívoca sobre a história. São disputas no presente que determinam como compreendemos, narramos e silenciamos o passado. Escolhas que, como lembra o historiador haitiano MichelRolph Trouillot, não podem ser compreendidas senão pelas lógicas de exercício do poder, em que grupos por terem acesso desigual aos meios de produção da história, contribuem de maneira dessemelhante às construções de narrativas. No caso da estátua do Bolsonaro de sucata, por que não pensar nos meios de acesso à própria cidade? Teriam outras pessoas condições materiais e políticas para erguer um monumento de 6 metros com o objetivo de colocá-lo em uma propriedade particular na avenida mais movimentada e cara de Passo Fundo? O silêncio do poder público seria igualmente benevolente? Trata-se de um projeto político de poder pela história, pela memória e, sobretudo, pela cidade. O futuro da cidade. Nós vamos permitir que ele seja forjado na sucata?

(*) Eduardo Roberto Jordão Knack é Doutor em História pela PUCRS. Professor Adjunto da UFCG. Murillo Dias Winter é Doutor em História Social pela UFRJ. Pós-doutorando na USP

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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