Opinião
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4 de agosto de 2021
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15:40

As nuvens no horizonte da economia global (por André Moreira Cunha e Andrés Ferrari)

 A meta colocada pela administração Biden de vacinar 70% de sua população (com pelo menos uma dose) até 4 de julho não foi atingida. (Imagem: Pixabay)
A meta colocada pela administração Biden de vacinar 70% de sua população (com pelo menos uma dose) até 4 de julho não foi atingida. (Imagem: Pixabay)

André Moreira Cunha e Andrés Ferrari (*)

Os rumos da economia global

No final de julho, o Fundo Monetário Internacional (FMI) atualizou sua análise sobre o desempenho recente e as perspectivas da economia global. Para o Fundo, a recuperação econômica não está garantida nem mesmo para os países que avançaram no processo de imunização de suas populações mediante a vacinação. Foi mantida a projeção de abril para o crescimento do produto interno bruto (PIB) global em 2021: +6%. Trata-se, pelo menos até aqui, de uma “recuperação em V”, dada a queda de -3,2% em 2020. Os efeitos econômicos da pandemia só não foram piores em função do apoio fiscal e monetário maciço, especialmente nos países centrais. Nestes, os estímulos totais foram, em média, equivalentes a 25% do PIB, bem maiores do que os verificados nos países emergentes (7% do PIB) e de baixa renda (2% do PIB).

O Fundo reduziu em -0,4 p.p. a estimativa de expansão dos países emergentes e em desenvolvimento (PEEDs) e ampliou em +0,5 p.p. a variação esperada na renda dos países avançados. Seus economistas estimam que as populações dos países avançados terão uma perda média anual de 2,8% na renda por habitante entre 2020 e 2022, ao se comparar o desempenho corrente com o pré-pandemia. No caso dos PEEDs (com exceção da China) esta perda seria ainda maior: 6,3%. O pior resultado deste segundo conjunto de países refletiria diferenças em termos de ritmo de imunização e de capacidade de implementação de medidas fiscais contracíclicas e discricionárias.

Nos países de alta renda, 40% da população estava imunizada no final de julho; nos emergentes, 11%; nos de baixa renda, 1,2%; e para o conjunto da população mundial, somente 13,2%. No plano fiscal, as economias avançadas têm planos de expansão de gastos da ordem de US$ 4,6 trilhões em 2021 e nos anos subsequentes. Já importantes economias emergentes limitaram seus estímulos fiscais ao ano de 2020 e começaram um movimento altista em suas taxas de juros. Os estragos desta combinação só não são maiores, pois a alta nos preços das commodities criou uma janela de oportunidades para os países produtores e exportadores de recursos naturais. 

Para consolidar a recuperação econômica seria vital atingir um nível de imunização de 40% da população mundial até o final de 2021, e de mais de 60% até metade de 2022. Para tanto, o FMI estima a necessidade de se investir US$ 50 bilhões em tratamento e vacinação. Nos próximos meses, pelo menos um bilhão de doses de vacinas teriam de ser compartilhadas pelos países que hoje possuem excedentes de produção e estoque. A prioridade deveria ser dada ao avanço na proteção dos países de renda baixa e média. Aquele valor representa uma pequena fração (1,5%) da perda cumulativa do produto global estimada até 2025: US$ 4,5 trilhões o que equivale a três economias brasileiras, tomando-se como referência o PIB em dólares correntes de 2020. 

A pandemia da Covid 19 aprofundou os problemas de esgarçamento do tecido social e as desigualdades globais de acesso à proteção social e ao trabalho digno. A OCDE – “Desigualdade na Riqueza das Famílias e sua Insegurança Financeira” (Julho de 2021) – traz evidências neste sentido para os seus países membros. Suas conclusões principais foram: (i) os 10% mais ricos detém quase a metade do estoque de riqueza, parcela que se ampliou desde 2010; (ii) metade das famílias dos países de alta renda possuem um estoque de riqueza líquida que tende a zero e, portanto, não estão em condições de garantir sua segurança financeira; (iii) em 2018, os 10% mais pobres nestes países estavam com dívidas excessivas e em patamares superiores aos observados antes da crise financeira global (2007-2019); e (iv) no contexto da pandemia, metade das famílias não tinha recursos para sobreviver sem algum tipo de apoio externo, posto que sua poupança líquida não garantia mais do que três semanas de cobertura das despesas. 

Já a Organização Internacional do Trabalho mostra que, em 2019, dos 7,7 bilhões de habitantes do planeta, 47% possuíam acesso a pelo menos um tipo de benefício social e 66% estavam vinculados a algum tipo de programa de saúde. Por decorrência, 4 bilhões de pessoas não tinham qualquer proteção social e 2,6 bilhões não tinham acesso à saúde. Todavia, a distribuição deste acesso é profundamente desigual entre os países e dentro destes. 

Este quadro se agravou com a pandemia. O Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais da ONU (UNDESA) já havia alertado para o fato de que: “Uma recuperação plena da crise pandêmica não é possível sem que sejam tratados [os temas] da segurança econômica e da redução da desigualdade.”. Os dados mais recentes sobre os “Objetivos de Desenvolvimento Sustentável 2030” mostram que, antes da pandemia, 2 bilhões de trabalhadores (60% das ocupações) no mundo tinham vínculos precários, que não garantiam acesso à proteção social. Deste contingente, 1,6 bilhão de pessoas foi negativamente afetada pelo isolamento social e perdeu a capacidade prévia de geração de renda.

Em 2019, 20% dos jovens do mundo não estavam ocupados ou estudando. A fome e a insegurança alimentar já estavam em alta no mundo desde 2014. Em 2019, 660 milhões de pessoas (8,9% da população global) passavam fome. Já a insegurança alimentar passou de 22,4% dos habitantes do planeta, em 2015, para 25,9%, em 2019. Antes da pandemia, 2,0 bilhões de pessoas viviam sem saber se o acesso à alimentação estava garantido. Com ela, a meta de acabar com a fome global até 2030 pode ser comprometida.

A realidade adversa descrita anteriormente é tributária de um processo de longo prazo de adoção de políticas neoliberais, as quais fragilizaram as redes de proteção social e a segurança do trabalho. Nos últimos quarenta anos, a mão visível dos Estados Nacionais protegeu os ricos da tributação e ofereceu padrões favoráveis de regulação. Como costumava dizer Martin Luther King Jr., mesmo antes da chegada de Thatcher e Reagan ao poder, trata-se de garantir “o socialismo para os ricos e o capitalismo para os pobres”. Na mesma perspectiva, Piketty – “Capital e Ideologia” (2020) – sugeriu que a legitimação deste modelo societal passa pela disseminação da visão de que o sucesso e o fracasso são atributos intrínsecos dos indivíduos.

A ideologia neoliberal prega a meritocracia e destrói os mecanismos sociais de mobilidade ascendente. Incapazes de obter sucesso material ou mesmo de prover a si as condições elementares de sobrevivência física e psíquica, os indivíduos se tornam presas fáceis dos discursos políticos simplificadores, preconceituosos e violentos. Nestes marcos, poderá ser ilusória a esperança de que a pandemia dará fim aos governos “populistas” e, assim, garantir a renovação das burocracias eficientes e das políticas democráticas. O baixo dinamismo econômico e a perda de capacidade estatal em muitos países podem esmagar ainda mais as camadas não proprietárias, renovando o convite à polarização política.

A insegurança dos indivíduos e a instabilidade social são fatores de risco para a economia e a política internacional. Pelo menos é isso o que sugere o Conselho Nacional de Inteligência dos Estados Unidos (National Intelligence Council, NIC) em suas análises prospectivas. Em 2017, com o título “Os Paradoxos do Progresso”, o NIC já alertava que, na era das redes sociais e com o avanço das novas tecnologias derivadas da revolução digital e da inteligência artificial, seria possível potencializar determinadas agendas políticas e identitárias, particularmente as iliberais. As frustrações das populações das economias de alta renda já eram marcantes nos anos que se seguiram à crise financeira global (2007-2009). A queda na renda, a perda de vínculos sólidos e estáveis nos mercados de trabalho e a perspectiva de que o futuro seria ainda mais difícil abriram as portas da radicalização política e o questionamento das instituições tradicionais e das políticas de integração social.

Os desafios de se governar sociedades polarizadas e frustradas seriam cada vez maiores. Para além disso, os problemas securitários, ambientais e econômicos também se revelariam mais complexos. Em todas essas dimensões, a tensão entre a necessidade de maior cooperação internacional e o repúdio das populações locais ao “globalismo” tenderiam a marcar as décadas subsequentes. Em 2021, o NIC – “Tendências Globais 2040:– um mundo mais contestado” – manteve esse cenário básico de conflitos. 

As análises do NIC e do FMI reafirmam as dificuldades em coordenar as ações governamentais de contenção dos efeitos sanitários e econômicos da pandemia. A cooperação internacional seria fundamental, posto que isoladamente os países não conseguem conter eventuais desdobramentos negativos da situação corrente. Se esta segue difícil, o mesmo se pode dizer sobre os problemas domésticos em países sistemicamente importantes, como os EUA. A meta colocada pela administração Biden de vacinar 70% de sua população (com pelo menos uma dose) até 4 de julho não foi atingida. Sobram vacinas e falta confiança de parte da sociedade na ciência, nas instituições e nos governos. De acordo com as estimativas oficiais, 192 milhões de estadunidenses haviam sido contemplados com até uma dose de vacina nos primeiros dias de agosto, o que equivale a pouco menos da metade da população. Já as doses de vacinas distribuídas, neste mesmo período, atingiram pouco mais de 400 milhões. A média móvel semanal de vacinações passou de um pico de 3,3 milhões de pessoas, no meio de abril, para 662 mil no começo de agosto. 

As divisões políticas do país seguem intensas e ameaçam a própria recuperação econômica. Se metade dos adultos estadunidenses estão totalmente imunizados, os recortes por faixa etária, etnia, região, afiliação política, dentre outros, mostram diferenças importante. Assim, por exemplo, a vacinação em eleitores democratas é quase duas vezes maior do que aquela observada dentre os republicanos. Pessoas mais jovens, de minorias étnico-raciais e de renda baixa também estão menos imunizadas. As divergências crescentes entre os distintos segmentos das sociedades não é um fato isolado do ambiente estadunidenses. Ao redor do mundo, multiplicam-se as manifestações populares contrárias à obrigatoriedade da vacinação, aos “passaportes sanitários” e às medidas de isolamento social e ou de prevenção, como o uso de máscaras. 

Como sugere o NIC, vivemos em um mundo em crescente contestação. A pandemia é somente um dos desafios coletivos que colocarão governos e sociedades à prova. As mudanças climáticas, as futuras crises financeiras e as novas rupturas sociais derivadas das transformações econômicas e tecnológicas em curso tenderão a aprofundar o sentimento de insegurança das pessoas comuns. O que os estrategistas do NIC não destacam é que a menor capacidade em construir soluções coletivas para os problemas reais do mundo contemporâneo é um claro legado da era neoliberal. Esta se caracterizou por construir políticas públicas que protegem os interesses dos ricos em detrimento do conjunto das sociedades.

A versão integral deste artigo, com as devidas referências bibliográficas, estará disponível no site da FCE. 

(*) Professores do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 


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