Opinião
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13 de agosto de 2021
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11:23

Artigas, o herói traído da Banda Oriental (por Glauber Gularte Lima)

Jose Gervasio Artigas (Imagem:  Domínio público, via Wikimedia Commons)
Jose Gervasio Artigas (Imagem: Domínio público, via Wikimedia Commons)

Glauber Gularte Lima (*)

a veces las maldades lo encuentran desarmado
no olvidar que peleando ganaba las batallas
y después lo vencían echándole traidores
Mario Benedetti

Na cidadela de Montevidéu, às margens do estuário do rio da Prata, nasceu José Gervásio Artigas, no ano de 1764. Mítico personagem ao qual se atribui a fundação da nacionalidade uruguaia, defendia a criação das Províncias Unidas do Rio da Prata e o sufrágio universal. Os ricos comerciantes e latifundiários de Buenos Aires e Montevidéu nunca aceitaram a ideia desse federalismo, e lhe despejaram por cima uma torrente de ódio, calúnias e traições.

Para se livrar dele, a oligarquia montevideana não apenas se ajoelhou covardemente diante da invasão luso-brasileira a Montevidéu em janeiro de 1817, como praticou a infâmia de entregar solenemente as chaves da cidade ao general português Carlos Lecor.

Mas muito tempo antes de se elevar à condição de Protetor dos Povos Livres, esse caudilho mergulhou na alma dos que habitavam os confins do pampa. Aprendeu desde cedo as lidas do campo e abraçou as distâncias infinitas, changueando e contrabandeando gado nas fronteiras com o Brasil. E foi imergindo nesse universo fatal de pobres do campo, contrabandistas, andarilhos sem rumo, que ele decifrou os códigos de honra da sua gente e desenvolveu a genialidade de estrategista militar.

O general inglês Guillermo Miller, em suas Memórias (1829), registra um acontecimento impressionante. Transportando uma tropa de gado pelas planícies do pampa, Artigas foi atacado por forças do governo colonial espanhol. Já com as montarias esgotadas pelo assédio, e pressentindo que se encaminhava para a morte com seus homens, ele deu uma ordem dolorosa e inusitada. Mandou sacrificar de imediato a maior parte de seus cavalos. Ao tombarem, estes se transformaram em parapeitos através dos quais eles abriram fogo com tamanha ferocidade e ousadia que obrigou a retirada de seus oponentes, após consideráveis perdas humanas.

O magnetismo que exercerá sobre os pobres do campo ele forjará em conversas aquecidas por labaredas de fogos de chão, em frias noites lamuriadas pelo açoite do vento pampeiro. Eduardo Galeano, em sua admirável trilogia Memória do Fogo (1982/86), registra que a primeira reforma agrária da América Latina foi realizada por ele. Seus beneficiários eram os mais pobres dentre os pobres: gauchos, índios e negros condenados às guerras e ao esquecimento. 

Com essa chusma, como a elite colonial os chamava, se ergueu em armas e lutou com honra. Venceu batalhas impossíveis e se tornou temido e venerado. Seu sonho era a integração das províncias do Prata em uma única federação. Por ele desembainhou sua espada e cavalgou destemido pelas planuras, sob o tremular dos estandartes, durante dez anos.

Em 1820, aos 56 anos, acossado por duas frentes inimigas, abandonado e traído pelos seus principais aliados, atravessou o rio Paraná e se exilou no Paraguai. Lá viveu na mais absoluta pobreza e solidão durante três décadas, até falecer em 1850, aos 86 anos. 

Morreu sem nunca mais ter pisado o território oriental, apesar dos cínicos convites que recebeu de Fructuoso Rivera para regressar “com honra”. Este havia sido integrante do seu estado-maior até o trair para apoiar a invasão portuguesa na Banda Oriental. Em 1830 Rivera assumira como primeiro presidente constitucional do Uruguai. Artigas jamais aceitou a desonra de retornar para viver como um bibelô de seus inimigos. Preferiu o desterro e o esquecimento, a mais terrível sentença que se pode imputar ao ser humano. 

A recuperação plena de seu heroico papel histórico levou décadas para ocorrer. O poeta nacional Juan Zorrilla de San Martín, em sua obra A Epopeya de Artigas (1910), o colocou definitivamente no panteão dos imortais. Zorrilla foi um dos que o resgatou do fosso de calúnias e mentiras onde o haviam aprisionado e realizou a reconciliação da História com a verdade.

O precursor da independência uruguaia cravou forte no solo oriental os palanques com as suas bases, embora as suas utopias fossem geopoliticamente muito mais amplas e estratégicas. O federalismo artiguista almejava não apenas que a Banda Oriental se libertasse do jugo espanhol, como projetava a sua vinculação definitiva às Províncias Unidas do Rio da Prata, em um sistema confederado com grande autonomia às províncias. Caso as curvas sinuosas da História tivessem permitido que se consumasse, abarcaria hoje um vasto território pertencente ao Uruguai, Argentina, Bolívia e Paraguai. 

A inauguração de um monumento digno da sua epopeia só ocorreu mais de setenta anos após a sua morte, em 1923, na Praça Independência, no coração de Montevidéu. Projetada pelo italiano Angelo Zanelli, uma gigantesca escultura em bronze eternizou Artigas montado sobre um imponente cavalo, cujas narinas estão dilatadas, como em estado de alerta diante da iminência de uma refrega. 

Seus restos mortais jazem em um mausoléu subterrâneo localizado sob essa escultura, em frente à antiga porta da cidadela construída à época do domínio espanhol, hoje chamada de Cidade Velha. Soldados de Honra do Regimento Blandengues, do qual foi oficial e comandante, se revezam todos os dias ao redor da urna funerária, velando a memória desse gigante oriental. 

(*) Glauber Gularte Lima é professor

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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