Opinião
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2 de agosto de 2021
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16:21

A distopia neoliberal e a utopia antifascista (por Luiz Marques)

Ato contra o governo Bolsonaro em Porto Alegre, dia 24 de julho. (Foto: Luiza Castro/Sul21)
Ato contra o governo Bolsonaro em Porto Alegre, dia 24 de julho. (Foto: Luiza Castro/Sul21)

Luiz Marques (*)

Os primeiros passos do capitalismo foram marcados pelo free market: a defesa da iniciativa privada contra qualquer intervenção do Estado. O indivíduo podia escolher como agir sem temor de punição. Ludwig von Mises (1881-1973) era um entusiasta do laissez-faire e, em consequência, dos princípios do livre mercado e da sociedade livre. Leia-se, livre da legislação de proteção aos assalariados. Hoje, as lições do economista austro-americano são propagadas pelo Instituto Mises Brasil, fundado em 2007, que se ufana de ser o centro (neo)liberal de maior influência no país.

É verdade que o laissez-faire sofreu um revés no fim do século XIX. “As leis trabalhistas, que haviam sido antes um espantalho para os homens da indústria, passaram não só a ser voluntariamente observadas por eles, mas também a estender-se em maior ou menor medida a todos os ramos industriais”, conforme observou Friedrich Engels no Prefácio de 1892 à obra que publicou aos vinte e quatro anos (A Situação da Classe Operária na Inglaterra, 1845). A luta para regular as jornadas de trabalho, o direito de associação, greve e aposentadorias educou a classe operária… e a própria burguesia. Porém, acá, em pleno séc. XXI, os neoliberais continuam em cruzada predatória pela precarização do trabalho. Vide ataques de Temer e Bolsonaro aos direitos previdenciários e trabalhistas, somados à terceirização dos serviços.

Entre nós, o neoliberalismo recende o laissez-faire manchesteriano. Com um acréscimo: a preocupação com a dimensão subjetiva do empreendedorismo para a construção do homem-empresa. Nasceu, assim, a noção do empreendedor que classifica de legítimas e soberanas todas as escolhas do indivíduo / consumidor, inclusive a situação de penúria. Sob o Estado de Bem-Estar Social, corriqueiramente, ouvia-se da classe média francesa que os clochards (mendigos) que, à noite, buscavam abrigo nas estações de metrô de Paris, tinham feito a opção existencial(ista) de viver à margem. O pleno emprego parecia respaldar a impressão. Mas, no contexto de uma sociedade com tamanhas iniquidades, como a brasileira, comentários do tipo soam cínicos. Desculpas esfarrapadas para fechar os olhos ao sofrimento que a burguesia provoca entre os vulneráveis, no corpo e na alma.

As objeções às desigualdades por parte do Estado, dos movimentos e entidades sindicais que reivindicam para a democracia um compromisso com a questão social – estão sempre sob suspeição na ótica das forças neoliberais. O indivíduo deve ser o único a decidir sobre suas ações, somente este sabe o que é bom para si. A superioridade do mercado residiria em que prescinde de controles e conselhos. Mais que palco para o espetáculo das mercadorias, o mercado converteu-se numa escola de aperfeiçoamento anímico. A narrativa sobre a (pseudo) autonomia individual, a qual abstrai os condicionamentos histórico-sociais que submetem todas e todos, virou justificativa preferencial para a reprodução do modo de vida no neoliberalismo.

O mercado fez-se motivador psicológico da ação humana, uma praxeologia aplicada. Na década de 70, na Universidade de Santa Cruz, na Califórnia, psicólogos debruçaram-se sobre os motivos de alguns indivíduos alcançarem os melhores resultados, comparativamente, frente a determinados desafios. Com o nome de neurolinguística, surgia o coaching (treinamento) para formatar a mente e o comportamento do sujeito neoliberal. Filão para especialistas desenvolverem técnicas de emulação dos funcionários nas empresas, impulsionando a subjetividade empresarial e afastando as peças defeituosas, resistentes ao aprendizado do modelo voltado ao homo economicus. “O processo de mercado é como um cenário em que ignorantes isolados, ao interagir, pouco a pouco revelam uns aos outros as oportunidades que vão melhorar a situação de cada um… O mercado é um processo de aprendizagem contínua e adaptação permanente”, explicam Pierre Dardot e Christian Laval (A Nova Razão do Mundo, 2016). Na paráfrase do slogan do governo ditatorial de Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) – Mercado: ame-o ou deixe-o.

O pressuposto para a formação do homem-empresa é a vitória dos valores do capitalismo sobre os valores do socialismo na batalha das ideias, parodiando o título de um antigo livro do Leandro Konder. A disputa é importante. As massas possuiriam um vazio de pensamento à espera de argumentos que dourem a pílula da dominação capitalista, na sua inflexão contemporânea. “Nenhuma das grandes invenções modernas teria sido posta em prática se a mentalidade da era pré-capitalista não tivesse sido inteiramente desmantelada pelos economistas. O que se denomina ‘Revolução Industrial’ foi um rebento da revolução ideológica realizada pelas doutrinas dos economistas”, sublinha Von Mises (Human Action, 1949). Não espanta a proliferação de think tanks (gabinetes estratégicos) para disseminar o ideário neoliberal. A luta de classes também se desenrola na aridez da arena intelectual.

O movimento Escola Sem Partido foi uma ofensiva para calar a crítica no ensino médio e universitário. A direita há muito cultiva o combate ideológico para consolidar no senso comum a “nova razão do mundo”. O objetivo é fazer de cada um, um empreendedor. Contudo, as crises do petróleo na década de 70 trouxeram à baila outra figura, a do empreendedor-inovador, o Chief Executive Officer (CEO, Diretor Executivo) “que durante o nevoeiro leva o barco”, como na canção. Sua tarefa: difundir e internalizar o espírito de gestão e a atitude empresarial nos trabalhadores, no local de trabalho e na sociedade. A educação e os veículos de comunicação são instrumentos indispensáveis dessa empreitada, em meio à desobrigação dos governos com a agenda social e ao desemprego massivo desencadeado pelas políticas obedientes ao Consenso de Washington (1989), que reatualizou o neoliberalismo inaugurado pela Société du Mont-Pèlerin (1947). Cabe ao Estado uma coerção vigilante para impor o respeito ao livre mercado e à iniciativa privada. C’est tout.

Para confrontar a distopia neoliberal, cujo desdobre reporta a infelicidade individual e coletiva, há que erguer a bandeira da solidariedade às vítimas da pandemia, do desemprego, do subemprego e da fome. O conteúdo da utopia antifascista, agora nas ruas e praças, consiste no programa para a felicidade com crescimento da economia, geração de emprego e distribuição de renda. O caos econômico, climático e ambiental, a condição de pária pestilenta e a iminência de represálias internacionais – contrabalançadas pela liderança de Lula nos dois hemisférios – já empurra frações das classes dominantes a trocar de paradigma no Brasil. É 2022 um déjà vu de 2002?

Segundo dados recolhidos pela Coordenação Nacional do Movimento de Fé e Política, em 2002, o PT pactuou com 71,5 mil declarantes do Imposto de Renda (IR), com rendimentos acima de 160 salários mínimos mensais. Caracterizou-se por um viés “social-desenvolvimentista[1], sem efetivar reformas estruturais (agrária, fiscal, política) e auditar a dívida pública. Foi o preço, digamos, para conquistas sociais que pelo critério da renda e consumo elevaram o patamar de mais de 30 milhões de brasileiros(as), tirando o país do mapa da fome da Organização das Nações Unidas (ONU). Às vésperas do segundo turno das eleições que ungiram o ex-retirante nordestino, vale lembrar, o clima quente opunha os interesses do mercado aos da cidadania. Muitos tremores corriam pela espinha dorsal das forças de esquerda.

Na conjuntura nacional, avaliava-se então o esgotamento do ímpeto de reestruturação econômica neoliberal, alavancada no ciclo de Fernando Henrique Cardoso; a cisão do bloco no poder; a tendência do PT ao centrismo; os indicadores macroeconômicos alarmantes do Produto Interno Bruto/PIB, dos índices de inflação e da taxa básica de juros. A situação social era tida como desesperadora. Na conjuntura internacional, salientava-se a exacerbação da hegemonia norte-americana, sem menção à ascensão da China. Entre os petistas, temia-se uma descaracterização da identidade político-partidária com a moderação anunciada na Carta ao Povo Brasileiro (22/06/2002), um atraso programático com o pacto interclassista para enfrentar o período em articulação com anacronismos oligárquicos. Enfim, a capitulação, a acomodação que feriria de morte a independência de classe do Partido “dos Trabalhadores”.

Diversas das ponderações recalcitrantes foram confirmadas, sobretudo no que concerne à ausência de ousadia para propor reformas estruturais que democratizassem a democracia realmente existente, sob o céu do tropicalismo neoliberal. Quando, no encerramento do primeiro governo de Dilma Rousseff, sob cerco, veio à luz a proposta de uma Constituinte Exclusiva para uma Reforma Política, Inês era morta. As adversidades conjunturais não permitiram que a intenção, embora sinalizando dispositivos saneadores para a corrupção que inundava de escândalos políticos a sociedade, mobilizasse a opinião pública para o problema. Perdera-se o timing político, enquanto os astros afiguravam-se favoráveis. Isto é, ainda sob a batuta presidencial de Lula no alto de uma aprovação recordista. Não obstante, outros apontamentos abusaram na dose do impressionismo político.

Há que ter humildade. Impossível auscultar por completo os meandros da atualidade. O cenário nacional e internacional apresenta maior complexidade. O empoderamento de novos sujeitos sociais e políticos (o precariado e outros movimentos por direitos igualitários e reconhecimento) mudaram a coreografia da luta de classes para 2022. Como aconselhava o saudoso Wanderley Guilherme dos Santos, é melhor “contra a arrogância dogmática, opor a simpatia cética”. As portas do futuro seguem abertas.

Nota

[1] Para uma contra-argumentação à aplicação do conceito de Social-Desenvolvimentismo, no caso, ler meu artigo – Outro Mundo é Possível: Com que Roupa? In: Democracia Socialista (DS/PT), 21/07/2021. É ilusório esperar que a democracia representativa permita a total otimização de políticas, do ponto de vista das classes trabalhadoras. Forjar uma conceituação para tais limitações institucionais não altera a realidade concreta, onde se travam os embates.

(*) Professor universitário, ex-secretário estadual da Cultura do Rio Grande do Sul

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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