Opinião
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17 de agosto de 2021
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07:26

A Cervejaria de Munique e o cantor golpista (por Tarso Genro)

Hofbräuhaus, local de
Hofbräuhaus, local de "The Beer Hall Putsch", uma tentativa inicial malsucedida de Hitler tomar o poder. (Foto: Andrew Bossi - CC BY-SA 2.5)

Tarso Genro (*)

Estudo de pesquisadores americanos, tornado público num artigo do New York Times, sobre anúncios publicados no Facebook, mostram que as notícias de fontes engendradas por extremistas e discursos de ódio, são uma extraordinária fonte de receita das plataformas. Sua disseminação nas redes de atenção, portanto, é um importante negócio global, cuja regulação pelos estados nacionais será muito difícil. O putsch da Cervejaria de Munique, que no século, passado levou anos para ter efeitos, hoje, por estes meios, pode levar apenas meses ou semanas. O putsch aconteceu na Cervejaria Bávara, em 9 de novembro de 1923, quando um maníaco depressivo chamado Adolf Hitler deu um tiro no teto para iniciar um golpe contra o Governo Bávaro, que seria o momento inicial para a tomada do poder em toda Alemanha.

O Manifesto Republicano de 1870, ao fazer a crítica de fundo à Constituição de 1824, “imposta pelo Príncipe ao Brasil constituído sem Constituinte”, designou nossa democracia como “democracia temperada”. A designação baseava-se no fato histórico que o pacto resultante daquela Carta, fazia uma confusão inaceitável do “divino com o humano”: o Manifesto de 1870 alegava que, “ou a divindade nada tem a ver com a vida do Estado (…) ou a vontade dos governados é o único poder supremo e o supremo árbitro dos Governos”. Qual é a divindade que nos governa hoje com o nome informal de “mito”?

Um pequeno e melancólico livro de Etienne Balibar, que frequentemente retomo – para relê-lo aos pedaços – me toca, especialmente, por dois motivos. Ele conjuga a angústia afetiva das relações de amizade, perdidas no tempo, com a busca comum da filosofia e da verdade na compreensão da História. No caso da Constituição de 1824, a “legitimidade” do gesto imperial, que criava o fato constituinte, estava ancorada na “amizade” linear dos soberanos com a figura divina, que gerava um consenso apaziguador na maior parte da sociedade, que aceitava os vínculos de linhagem.

Num texto do livro de Balibar – acima referido – ele lembra que Lukács dizia que a filosofia” deve realizar-se na História”, porque nesta se integram sujeito e objeto (consciência e ação transformadas em fatos) que perseguem um “sentido”, para mudar ou conservar o curso da vida. O “putsch” – por exemplo – nesta concepção, traduziria uma concepção autoritária da política, já que ele busca, sem consenso, mudar a vida de uma certa comunidade sem qualquer permissão.

O texto está na pequeno livro “Pour Althusser” (no Brasil, Black Son Editores, 1993; na França Éditions La Découverte, Paris, 1991) no qual o autor passeia sua inteligência para compreender a obra do seu mestre e, ao mesmo tempo, “ajustar” os seus sentimentos de perda pela morte do amigo Louis Althusser. As perdas pessoais, no caso de Balibar, ajudando e pensando a compreensão da História.

Arquivo pessoal

Entender os fatos históricos relevantes medindo as lutas utópicas como “perdas” superáveis, para a construção de um mundo “justo”, é um desafio complexo que ainda não compreendemos de forma plena. O que aconteceu com o Brasil? Como a selvageria e a necrofilia política conseguiram instalar-se aqui, com tamanha naturalidade? Confesso que também me atrai no livro de Balibar uma ponta de vaidade pela dedicatória que ele assinou – depois de uma longa conversa a dois, há quase 30 anos – num Seminário de Filosofia no interior da Alemanha. Através da dedicatória ele me ofereceu a sua “amitié”, que valorizei só depois de lê-lo: na obra entendi a extensão que ele dá a esta palavra, que registro sem sequer saber se Balibar ainda lembra deste episódio.

Mas eu me lembro muito. Não só porque o admiro como ser humano e filósofo, mas também porque nas novas condições de integração do mundo, sob a tutela do grande capital fictício ou real, o cotidiano e a História, os coletivos e os indivíduos, podem tornar pelas redes – aquilo que é impossível hoje – um novo e trágico amanhã sonhado de improviso por mentes insanas.

A cena divulgada nas redes na qual o cantor, fazendeiro e militante de extrema direita Sérgio Reis, “organiza” suas esquadras de amigos para assaltar o poder, poderia ser considerada uma opereta bufa, onde desmiolados e fracassados na vida democrática apenas sonhassem com um “xeque mate” na Carta de 88, se não tivessem o estímulo do próprio Presidente da República.

Mas não foi só sonho. No pequeno vídeo há toda uma estratégia política clara (hoje impossível de ser executada) que, se feita num país com instituições democráticas fortes, desencadearia um Inquérito Policial, no mínimo para elidir as dúvidas sobre ameaças físicas feitas pelo grupo de fanáticos contra membros do STF e do Senado Federal. O cantor não é certamente um Hitler em potencial, mas estes estão hoje em várias instâncias do poder e suas ameaças podem ser cumpridas por milicianos que se sentem impunes nas atuais relações reais de poder.

Aquela reunião foi, na verdade, um cenário análogo ao da Cervejaria de Munique. Naquele episódio, Hitler, Rudolf Hess e outros facínoras, foram para trás das grades tratados como hóspedes do Poder Judiciário alemão, que apenas iniciava a sua conivência com os seus delírios ditatoriais.

Mais tarde eles voltaram, roubaram, assassinaram, ocuparam países em nome de Deus, da Pátria e da Família e promoveram um genocídio barbaramente exemplar. Proclamar Deus acima de todos e impor ser aceito como um “mito”, vinculado a este Deus falsificado pela palavra, é reiniciar a trajetória do maníaco da Cervejaria de Munique. Só uma unidade moral e política contra a barbárie – para derrotar este mito e seu deus impostor- pode nos credenciar para vencer o delírio totalitário que, como se viu, pode estar ali no horizonte, perto do inferno, mas muito longe de qualquer Deus da bondade e da Justiça.

(*) Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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