Economia
|
1 de julho de 2021
|
10:09

Descolamento do crédito e da massa de rendimentos: um problema para a retomada (por Flavio Fligenspan)

Foto: Luiza Castro/Sul21
Foto: Luiza Castro/Sul21

Flavio Fligenspan (*)

Felizmente, a vacinação avança no país, ainda que a passos lentos, e isto traz dois reflexos facilmente identificados: cai o número de internações e mortes de pessoas mais velhas e recupera-se em parte a atividade econômica. Enfim, a ciência funciona, e mesmo em plena contradição com a posição do Presidente, os Ministros da Saúde e da Economia fazem campanha pelas vacinas, porque sabem que esta é a única saída possível para a crise.

Nota-se um entusiasmo, a meu ver exagerado, em alguns setores, secundado por aumento dos indicadores de confiança. Além da Agropecuária, que tem seu ritmo próprio, muito ligado ao mercado internacional, no Comércio e na Indústria há atividades com bom desempenho e outras com taxas negativas. O mercado financeiro ainda não se abalou com as denúncias de corrupção no Governo e segue projetando altas para a Bolsa e para a taxa de crescimento da economia em 2021.

Quando se olha para as camadas mais baixas da distribuição de renda, o quadro muda bastante. As famílias desta faixa vivem, basicamente, da renda do trabalho formal ou informal de seus componentes e de algumas transferências do Estado, como aposentadorias, pensões, Bolsa Família e Auxílio Emergencial, neste ano muito reduzido em relação ao de 2020. A última informação do IBGE sobre o mercado de trabalho, relativa a abril, mostrou uma taxa de desocupação crescente (14,7%), como todos especialistas projetavam desde o ano passado, e um número de desocupados que chegou a 14,7 milhões. Para quem gosta de coincidências, as duas variáveis mostram números iguais, fenômeno que tem ocorrido noutros meses, recentemente – dezembro foi um deles, com 13,9% de desocupação e 13,9 milhões de desocupados. Observem-se como os números pioraram rapidamente.

Como se sabe, o mercado de trabalho no Brasil depende muito do setor de Serviços que, por sua vez, ocupa muitas pessoas na informalidade, com as menores remunerações. Como os Serviços têm ficado para trás na recuperação, em função do distanciamento social, não há vagas para todos que necessitam trabalhar. E quem mais precisa da renda do trabalho são as pessoas de baixa qualificação e baixo rendimento, no mais das vezes os trabalhadores informais. Assim que se acumulam os problemas para as famílias mais pobres, especialmente os problemas financeiros que levam ao endividamento e à inadimplência. Para quem depende do crédito para consumir, esta é uma má notícia. Mas não é ruim apenas para o cidadão ou para a família endividada; é também para a economia que vê reduzida a demanda agregada e as oportunidades de expansão da produção e das vendas.

Examinando informações sobre o avanço recente do crédito para pessoas físicas, me deparei com a continuidade de um processo de expansão que vem de longos anos, abalado apenas de forma localizada entre abril e junho do ano passado, quando a pandemia se abateu com força no Brasil. O curioso é que a massa salarial ampliada – medida que engloba rendimentos do trabalho e transferências –, que vinha acompanhando o crescimento do crédito até o início de 2020, deixou de fazê-lo com a pandemia. Numa análise gráfica, fica evidente o distanciamento das duas curvas, principalmente pela “parada” da massa, o que suscita um problema óbvio: como pagar este crédito que segue crescendo, se não há renda para tanto?

A consequência deste desencontro das duas variáveis foi o natural aumento do endividamento das famílias (relação entre o total das dívidas e a renda acumulada nos últimos 12 meses), que passou de 49% em média no primeiro semestre de 2020 para 58% em março deste ano, última informação disponibilizada pelo Banco Central. O conjunto de dificuldades financeiras também fez aumentar o comprometimento da renda das famílias, variável que mede o percentual da renda mensal reservado para pagamentos de dívidas contraídas.

A conclusão a que se chega é que a paralisação da economia durante boa parte do ano passado e a demora da retomada, muito em função do atraso da vacinação, trouxe uma combinação nefasta de falta de ocupação e renda, endividamento e comprometimento da renda mensal, especialmente das famílias mais necessitadas. Além do sofrimento pessoal, esta realidade afasta estas famílias de novos planos de crediário e, portanto, do consumo de bens que necessitam de crédito, retardando mais ainda a retomada da atividade.

(*) Professor do Departamento de Economia e de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora