Coronavírus
|
10 de setembro de 2021
|
07:38

Covid-19: A longevidade é privilégio de quem?

Por
Renata Cardoso
[email protected]
População idosa foi mais atingida pelo vírus, principalmente antes da vacinação. Arte de Sul21 sobre fotografia de Paula Fróes/Governo da Bahia
População idosa foi mais atingida pelo vírus, principalmente antes da vacinação. Arte de Sul21 sobre fotografia de Paula Fróes/Governo da Bahia

Em Porto Alegre, 78,15% dos óbitos causados pela covid-19 no período entre 17 de março de 2020 e 16 de junho de 2021 foram de pessoas brancas. Em uma primeira leitura, os dados aparentemente não demonstram nenhuma discrepância, afinal, de acordo com o levantamento feito em 2019 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), aproximadamente 24,6% da população da capital gaúcha é preta ou parda e os óbitos desse grupo populacional por covid-19 no período informado somam 18,98% do total.

Leia mais:
‘Ignorados’, aposentados e donas de casa são os que mais morrem por covid-19 em Porto Alegre

“Antes da gente chegar nessa idade, a pressão alta já nos matou, a diabete já nos matou, a bala já nos matou.”
Porém, uma questão destacada por especialistas é que a infecção pelo Sars-Cov-2 durante muito tempo, especialmente antes da campanha de vacinação começar, foi mais letal em idosos, e a expectativa de vida das pessoas pretas e pardas no Rio Grande do Sul (e no Brasil) é menor do que a das pessoas brancas. “A discussão que os movimentos negros trazem é: a longevidade é privilégio de quem no Brasil? Antes da gente chegar nessa idade (me entendendo como parte desse coletivo de pessoas pretas), a pressão alta já nos matou, a diabete já nos matou, a bala já nos matou. Então a gente tem uma série de possibilidades de ter a existência interrompida antes de chegar nessa idade. As pessoas negras estão excluídas dessas estatísticas justamente porque elas têm a vida interrompida mais cedo. Na hora da morte existe um recorte racial que é muito forte no Brasil”, afirma Lucilene Athaide, mestra em Ciências Sociais com habilitação em Políticas e Práticas Sociais.

Maicon Rodrigues, geógrafo que está realizando sua dissertação de mestrado sobre o recorte racial da covid-19 no Rio Grande do Sul e faz parte do projeto Sistema de Informação Geográfica (SIG) do Litoral Norte do Rio Grande do Sul realizado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), fez uma análise da mortalidade por covid-19 no Estado, desde o primeiro caso confirmado ainda em fevereiro de 2020 até o dia 30 de abril deste ano, a partir dos dados tabulados em 12 de maio de 2021. “A gente percebe que há uma prevalência da mortalidade das pessoas brancas já a partir dos 60 anos de idade. Se cruzarmos esses dados com os dados sociais no que tange a questão da expectativa de vida ao nascer por raça/cor, a gente vai perceber que esses segmentos finais, nas idades mais avançadas, são segmentos onde predominantemente a população é branca porque pessoas pretas ou pardas, ou de outras etnias, acabam não conseguindo sobreviver até essas faixas etárias mais avançadas, demograficamente falando. Esse é um dos motivos do porquê das pessoas brancas morrerem mais quando se fala de covid-19”, explica o pesquisador.

Apesar da questão etária ser um aspecto importante quando se trata de covid-19, é preciso ir além para compreender como a doença realmente afeta a população. O estudo “Racial disparity in excess mortality in Brazil during COVID-19 times”, realizado por um grupo de cientistas brasileiros e publicado em junho deste ano no European Journal of Public Health, mostrou que houve, no Brasil, um excesso de mortalidade de 26,3% entre pretos/pardos em comparação com 15,1% entre brancos. “Nossos resultados mostram uma lacuna considerável no excesso de mortalidade entre a população negra/parda no Brasil durante a pandemia de COVID-19. É importante ressaltar que o excesso de mortalidade prematura no Brasil, especialmente na faixa etária de 30 a 59 anos, foi notável, afetando principalmente os pretos/pardos”, informa o documento publicado em umas das mais prestigiadas revistas científicas internacionais.

Em nível estadual, o projeto Sistema de Informação Geográfica (SIG) do Litoral Norte do Rio Grande do Sul realizou em março o cálculo da letalidade aparente com base em dados estaduais compilados até 20 de março de 2021. Naquele momento, a taxa de letalidade dos amarelos (orientais, chineses, japoneses) era de 0,4% e dos brancos de 1,58%, outros grupos populacionais, historicamente discriminados, possuem letalidade mais elevada: os negros (pretos e pardos) têm letalidade de 1,78% e os indígenas de 1,81%. Isto significa que um paciente negro (preto ou pardo) com covid-19 em relação a um paciente branco tinha, no momento do estudo, um risco de morte 13% maior. Já um indígena tinha risco 15% maior. Isso sem entrarmos em outro ponto fundamental para tentar compreender como a doença afeta de fato a população: o grande número de dados “não informados” ou “ignorados”.

Em relação à cor/raça dos mortos por covid, Rodrigues aponta que os dados tidos como “não informados” cresceram muito nos momentos mais críticos da pandemia. De acordo com o pesquisador, ao analisar os dados que foram registrados de fevereiro de 2021 até os de final de abril de 2021 foi possível perceber que os ignorados passaram de algo em torno de 20% do total para um montante de 49% do total.

Enquanto isso, os óbitos de pessoas brancas causados pela doença antes do início de 2021 giravam em torno de 70% no Estado, e depois esse percentual cai abaixo de 50%. “Justamente por dois motivos: a primeira questão que a gente percebe nos momentos de crescimento repentino e muito acentuado de óbitos é que cresce também o número de pessoas não hospitalizadas. Esse é um dado muito importante para a gente entender esse não registro de raça/cor. Quando as pessoas morrem fora do hospital esse registro é mais difícil de ser captado. E socialmente a gente sabe que quem tem mais dificuldade de acesso aos hospitais e ao cuidado são as pessoas pretas ou pardas, seja pela questão financeira, seja pela distância física dos locais de atendimento”, explica Rodrigues.

De acordo com a pesquisa do geógrafo, 91% das pessoas que morreram fora dos hospitais no Rio Grande do Sul no período analisado não tiveram sua raça/cor informada

Fazendo esse comparativo e também analisando a composição demográfica do Estado, o pesquisador aponta que provavelmente grande parte desses ignorados são justamente esses pretos e pardos que aparecem de forma muito tímida nos números. “A proporção de mortalidade que a gente visualiza ao longo do tempo não é desigual no sentido de desfavorecer pessoas brancas e favorecer pessoas negras, mas as condições de acesso aos aparelhos de saúde e aos aparelhos de prevenção, que seria a higiene básica, esses sim influenciam. Se a gente consegue cruzar esses dados socioeconômicos com os dados demográficos, a gente vê que provavelmente grande parte desses ignorados são justamente pessoas pretas e pardas que não estão aparecendo nos dados”, indica Maicon.

Os piores momentos da pandemia são justamente aqueles em que essas desigualdades são “escondidas” pela questão da perda do dado. Porém, elas também afloram no sentido de mostrar quais são as pessoas que conseguem de fato chegar até a hospitalização. “É nítido que desde o início da pandemia existe uma preocupação em se criar uma ideia junto à população de que quando nós aumentamos a capacidade de hospitalização em UTI nós podemos expor mais as pessoas ao vírus, o que é um pensamento completamente inadequado, visto que nós temos um quadro de mortalidade dentro de UTIs muito alto. Aumentar o número de leitos em UTI como uma forma de voltarmos à normalidade é aceitarmos que um grande número de pessoas vai se infectar, vai desenvolver um quadro grave e provavelmente pode morrer. E quando a gente olha esses momentos de crise, além do alto número de pessoas que morreram em UTIs, a gente tem um alto número de pessoas que morrem não hospitalizadas. Esses não hospitalizados chegaram a quase 50% do total das mortes. E isso tem uma relevância muito grande”, pontua o pesquisador.

Essa falta de informação leva à desumanização, uma vez que não expõe um dado básico que caracteriza a pessoa. Não somente transforma o indivíduo em número, mas em um número “ignorado”. Um número que esconde rostos, vidas, trajetórias. “Os dados evidenciam um pouco daquilo que o Rio Grande do Sul sempre fez: esconder as populações não brancas. A gente tem uma facilidade muito grande de identificar os óbitos de pessoas brancas, a gente tem inclusive uma tendência em registrar os óbitos dessas pessoas muito maior em relação a registrar os óbitos de qualquer outra cor/raça. Para conseguir identificar as mazelas sociais, as desigualdades socioeconômicas, é importantíssimo a gente conseguir fazer esse recorte”, finaliza o pesquisador.

Nota técnica

Os dados estratificando os óbitos por raça/cor em Porto Alegre foram obtidos com exclusividade e tiveram como fonte o Sistema de Informação sobre Mortalidade SIM/DVS/PMPA, que utiliza como documento fonte a Declaração de Óbito (DO). De acordo com o Manual de Instruções para o Preenchimento da Declaração de Óbito, disponível no site da Prefeitura de Porto Alegre, “o médico tem responsabilidade ética e jurídica pelo preenchimento e pela assinatura da DO”. Segundo as instruções do manual: “Raça / Cor 5 – assinalar a quadrícula correspondente com um ‘X’. Esta variável não admite a alternativa ‘Ignorada’. A cor do falecido deve ser perguntada ao responsável pelas informações do falecido, não devendo nunca ser decidida pelo médico a partir da observação”.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora