Coronavírus
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9 de setembro de 2021
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08:29

‘Ignorados’, aposentados e donas de casa são os que mais morrem por covid-19 em Porto Alegre

Por
Renata Cardoso
[email protected]
Arte: Matheus Leal/Sul21 sobre fotografia de freepik.com
Arte: Matheus Leal/Sul21 sobre fotografia de freepik.com

Não estamos “todos no mesmo barco”, como alguns disseram no início da pandemia. As desigualdades sociais influenciam diretamente quem vive e quem morre por covid-19 em Porto Alegre. Ter acesso ao sistema de saúde, se manter o máximo possível em casa e até mesmo conseguir o básico para sobreviver durante a maior crise sanitária do século não são tarefas fáceis para a população mais vulnerável da Capital.

Dados inéditos mostram uma realidade de apagamento: no período entre 17 de março de 2020 a 16 de junho de 2021, no quesito ocupação, os tidos como “ignorados” somam 1.069  pessoas, representando 23,93% dos óbitos. Na sequência aparecem os “aposentados e pensionistas”, com 23,86%, o que significa 1.066 pessoas em números absolutos. As “donas de casa”, com 12,31%, correspondem a 550 vítimas fatais da covid-19. Juntas, essas três categorias somam mais de 60% das 4.467 mortes de residentes em Porto Alegre pela doença no período informado. O detalhamento dos óbitos segundo ocupação foi feito conforme o Código Brasileiro de Ocupações e teve como fonte o Sistema de Informação sobre Mortalidade SIM/DVS/PMPA, que utiliza como documento fonte a Declaração de Óbito (DO).

De acordo com o Manual de Instruções para o Preenchimento da Declaração de Óbito, disponível no site da Prefeitura de Porto Alegre, “o médico tem responsabilidade ética e jurídica pelo preenchimento e pela assinatura da DO”. O documento detalha que a ocupação habitual é o tipo de trabalho que a pessoa desenvolveu na maior parte de sua vida produtiva. Recomenda-se não preencher com ocupações vagas, como vendedor, operária, professor, médico etc, mas com o complemento da ocupação: vendedor de automóveis, operária têxtil, professor de matemática do ensino médio, médico pediatra etc. No caso do falecido ser aposentado, deve-se preencher com a ocupação habitual anterior. As categorias estudante, dona de casa, aposentado/pensionista e desempregado devem ser evitadas ao máximo, mas podem ser usadas em situações de exceção.

“Também é preciso pensar que em um momento de colapso, essa estrutura de dados fica em segundo plano. Entre preencher documentos e salvar uma vida, o médico optará pela segunda opção. Além disso, podem ocorrer erros no preenchimento do banco de dados. O DataSus, que é o sistema de informações do SUS, em geral demora dois anos para fornecer esses dados que estamos trabalhando em tempo real”, pondera Ricardo de Sampaio Dagnino, professor do Departamento Interdisciplinar, Campus Litoral Norte, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (CLN/UFRGS), doutor em Demografia e mestre em Geografia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e coordenador do projeto Sistema de Informação Geográfica (SIG) do Litoral Norte do Rio Grande do Sul, que está realizando diversas leituras dos dados a respeito da covid-19 no Estado.

Porém, de acordo com o especialista, diante de uma crise sem precedentes não é possível esperar todo esse tempo para buscar ler a realidade por meio dos dados, uma vez que esse trabalho pode ajudar a embasar políticas públicas de enfrentamento à pandemia. Ele também destaca que, para além da falta de informação por um esquecimento ou impossibilidade do profissional de saúde em preencher esse campo do documento, é possível afirmar que existe, de fato, uma negligência com relação aos dados de pessoas em situação de maior vulnerabilidade, que em muitos casos não possuem apenas uma ocupação ou não estão empregadas de modo formal. “Existe na ciência toda uma literatura que diz que provavelmente esses ‘ignorados’ ou ‘não informados’, em geral, são pessoas mais vulneráveis. Existe uma tendência de que esses não informados sejam negros, indígenas, pobres, tenham ocupações menos valorizadas…. Sendo codificadas com menos cuidado”, completa o pesquisador.

Lucilene Athaide, mestra em Ciências Sociais com habilitação em Políticas e Práticas Sociais, também destaca outros indícios que cercam o elevado número de ignorados. “É bem interessante esse termo ‘ignorado’ que a gente pode pensar em todo um construto social a partir dele. Ignorados por quem, inclusive na hora da morte? Nesse sentido, a informalidade atinge principalmente as pessoas negras com foco ainda maior nas mulheres. E essa informalidade alcança também diversas outras profissões: quem trabalha como pintor, como vendedor ambulante… No momento em que se entra numa casa de saúde e não se registra esse dado, é muito fácil esse profissional entrar nessa gama dos ignorados”, explica.

De acordo com a Síntese de Indicadores Sociais produzida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgada em novembro de 2020, a informalidade no mercado de trabalho atingia 41,6% dos trabalhadores brasileiros em 2019, ou 39,3 milhões de pessoas. Entre aquelas ocupadas sem instrução ou com o ensino fundamental incompleto, a proporção de informais era de 62,4%. Ainda de acordo com o relatório, a população preta ou parda (47,4%) estava mais inserida em ocupações informais em todas as unidades da Federação, quando comparada à população branca (34,5%). Além disso, as atividades que mais concentraram pessoas em ocupações informais, em 2019, foram serviços domésticos (72,5%), agropecuária (67,2%) e construção (64,5%). Sendo os  serviços domésticos a categoria com o menor rendimento médio. Cenário que provavelmente foi agravado com a pandemia.

A falta de registros não reflete apenas no apagamento de pessoas e suas histórias, transformando-as em números de uma estatística quase ausente de significados. A inexistência de dados, ou o grande número de “ignorados”, reflete diretamente na construção de políticas públicas. “Fica muito difícil ter uma política de combate à covid-19 se a gente não conseguir realmente pensar quem são esses sujeitos, por que estão sendo contaminados e de que forma a gente enquanto sociedade continua invisibilizando alguns corpos perante outros. Podemos pensar nas questões de raça e gênero, mas sem esquecer também da população de rua, da população carcerária, das profissionais do sexo… Então, há uma gama muito grande de ‘ignorados’. Precisamos entender que essas pessoas fazem parte sim da sociedade, estão se contaminando e estão transmitindo essa doença e de que forma vamos colocar essas pessoas visíveis dentro do sistema de saúde para coibir que isso continue acontecendo”, complementa Athaide.

Para a sanitarista e vereadora de Porto Alegre Daiana Santos (PCdoB), os “ignorados” têm uma relação direta com o exercício do trabalho doméstico não remunerado. Função que, conforme lembra, é executada em grande parte por mulheres negras que não são reconhecidas como trabalhadoras. Percepção que é confirmada por dados: de acordo com a Síntese de Indicadores Sociais, existe uma maior proporção de pessoas de cor ou raça preta ou parda na ocupação de empregados e trabalhadores domésticos sem carteira e trabalhadores por conta própria não contribuintes.

Para a vereadora, o grande número de “ignorados” é uma das faces do racismo estrutural: “Como sanitarista digo isso, a gente olha a saúde em um contexto mais amplo, não somente como a ausência da doença. Não se pensa somente no momento da contaminação, mas antes, nas condições de vida, na segurança, no transporte público. Precisamos olhar para todo um contingente de políticas não executadas que impacta na vida dessas pessoas, e isso, em definitivo, vai falar de quem vive e de quem morre no Brasil, desde antes da pandemia”.

A histórica e persistente desigualdade racial no mercado de trabalho se acentuou durante a pandemia. As necessárias medidas de distanciamento social e fechamento das atividades econômicas sem uma efetiva política de auxílio às populações mais vulneráveis fizeram com que a pobreza e o desemprego atingissem ainda mais quem já tinha muito pouco.

Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostraram que mais de 6,4 milhões de homens e mulheres negros saíram da força de trabalho — como ocupados ou desempregados –, entre o 1º e o 2º trimestre de 2020, isto é, perderam ou deixaram de procurar emprego por acreditar não ser possível conseguir nova colocação. Entre os brancos, o número de pessoas nessa mesma situação chegou a 2,4 milhões. Segundo o boletim elaborado pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), dos 8 milhões de pessoas que perderam o emprego entre o 1º e o 2º trimestre de 2020, 6,3 milhões eram negros e negras, o equivalente a 71% do total. Entre o 4º trimestre de 2019 e o 2º de 2020, cerca de 72% ou 8,1 milhões de negros e negras estavam em situação vulnerável no país.

Se pudéssemos traçar um perfil dessa massa denominada “donas de casa” ele teria, pelo menos, uma característica essencial: o cuidado com os outros. Sejam eles filhos, sobrinhos, familiares mais velhos, companheiros e até vizinhos. Muitas vezes, são mães solo responsáveis por absolutamente tudo, e que justamente por isso acabam deixando o seu próprio cuidado em segundo plano.

“É muito difícil procurar um atendimento médico se tu tem noção de tudo o que te espera no outro dia, toda a cobrança e gama de tarefas”
“Dentro das categorizações do IBGE existe uma série de termos, e entre eles o ‘do lar’, que seria essa mulher que não trabalha fora, nem formal ou informalmente, mas que exerce esse trabalho de cuidado. É aquela que sai à rua para ir no posto marcar algum exame para os membros da família, que vai ao banco resolver questões, que leva as crianças para a escola, que faz supermercado. Mas, ao mesmo tempo, se diz ‘do lar’ em função desse imaginário de uma mulher que só fica em casa. Muitos hospitais, quando recebem essas pacientes, já as recebem em uma condição de debilidade muito grande. Porque é muito difícil procurar um atendimento médico se tu tem noção de tudo o que te espera no outro dia, toda a cobrança e gama de tarefas. São mulheres que não podem parar de forma alguma, pois são fundamentais para esse funcionamento familiar”, explica Athaide.

Dentro desse grupo existe uma parcela ainda mais invisibilizada, que são as mães solo. “Quando a pobreza aumenta, quando a desigualdade se acentua, é essa população que vai sentir o impacto. Nós, que estamos desde o início falando da necessidade do cuidado, do afastamento, não esqueceremos que o município não quis olhar para isso”, lembra a vereadora.

Porém, esse afastamento necessário mencionado por Daiana Santos e tantas vezes apontado como recurso principal para conter a pandemia — especialmente antes da vacinação –, para muitas pessoas significa a perda da única possibilidade de subsistência. “São essas mulheres que saem para fazer faxina, que saem com seus carrinhos com seus filhos, porque as escolas e creches estavam fechadas, porque os professores não tiveram prioridade na vacinação. Tudo está imbricado, é importante fazer essa leitura porque isso vai impactar na morte dessas mulheres que são as últimas a procurar o cuidado. Antes do cuidado, a urgência é a fome, é a sobrevivência do dia. A saúde para elas, naquele momento, é a comida para o filho.”

Nota técnica

O documento disponibilizado pela Prefeitura aponta em sua descrição os óbitos por covid-19 nos anos de 2020 e 2021, consultados em 18 de junho de 2021. Essa informação é importante pois, segundo os especialistas em demografia consultados, o sistema é atualizado diariamente, podendo receber informações retroativas, ou seja, em setembro podem entrar dados referentes a março, por exemplo, alterando o painel de informações, algo comum em tempos de crise.


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