Saúde
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29 de fevereiro de 2024
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17:46

Nova crise do IPE Saúde confirma alertas feitos antes da reforma, dizem servidores

Por
Luís Gomes
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Servidores protestam contra reforma do IPE em audiência pública realizada uma semana antes de aprovação pela Assembleia Legislativa | Foto: Joana Berwanger/Sul21
Servidores protestam contra reforma do IPE em audiência pública realizada uma semana antes de aprovação pela Assembleia Legislativa | Foto: Joana Berwanger/Sul21

Em 20 de junho do ano passado, logo após a Assembleia Legislativa aprovar a reforma do IPE Saúde, o governador Eduardo Leite (PSDB) fez uma publicação em suas redes sociais saudando a aprovação como uma forma “garantir o IPE equilibrado” para “assegurar o atendimento a todos e dar condições de ampliar a qualificar a rede credenciada. A reforma no IPE ocorreu na esteira de anos de crise, ameaças de descredenciamento por parte de hospitais e um déficit mensal, apontado pelo governo, na ordem de R$ 36 milhões. Menos de um ano depois da aprovação da reforma, que buscou financiar o instituto com aumento das alíquotas cobrados dos servidores e instituição de cobranças por dependentes, o IPE Saúde volta a enfrentar uma nova crise, com a classe médica e federações hospitalares voltando a ameaçar suspender o atendimento pelo plano.

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No início da semana, a Federação dos Hospitais (Fehosul) e a Federação Hospitais Filantrópicos do RS (Federação RS) informaram que devem descontinuar o atendimento pelo plano com a entrada em vigor do novo modelo de remuneração para os hospitais. A partir das novas normativas, o IPE Saúde passará a ressarcir os medicamentos de acordo com o valor do princípio ativo, sendo que todos os medicamentos atualmente cobertos seguirão disponíveis nas novas tabelas.

A diferença do valor entre o que os hospitais recebiam e passarão a receber por medicamentos será realocada para o reajuste de serviços, aumentando em até 90% o repasse para esse tipo de contas, segundo o IPE Saúde. Já a Fehosul e a Federação RS, que estimam atender 60% dos usuários do plano, afirmam que as medidas poderão reduzir em até 33% o faturamento anual, o que levaria as instituições a operar com prejuízo.

Paralelamente, o Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio Grande do Sul (Cremers) emitiu uma manifestação em que considera urgente a atualização dos valores de consultas e procedimentos pagos aos médicos credenciados ao IPE Saúde.

“A tabela de remuneração dos serviços médicos está defasada há muitos anos, e impacta negativamente o atendimento aos pacientes. Os valores pagos aos médicos, muitas vezes são impraticáveis para garantir o trabalho médico e a manutenção dos consultórios, inviabilizando o atendimento pelo IPE Saúde. As recentes negociações realizadas pelo governo do Estado não foram cumpridas em sua totalidade, o que resultou no descredenciamento de profissionais de diversas especialidades e na precarização da assistência a cerca de 1 milhão de usuários”, diz nota do Cremers, acrescentando ainda que a entidade entende como justa a reivindicação de entidades hospitalares.

Diante do impasse, o IPE Saúde informou que adiará por 30 dias a entrada em vigor das novas normativas para “dar mais tempo para que os prestadores credenciados entendam e se adaptem às mudanças”.

Com a reforma do IPE Saúde, o governo previu um aumento de arrecadação de R$ 720 milhões anuais. Como as regras entraram em vigor apenas em outubro, ainda não é possível verificar se a expectativa se confirmará no primeiro ano pós-reforma, mas o órgão estima que o aumento de arrecadação nestes primeiros meses tem acompanhado as projeções feitos pelo governo.

A partir desta projeção, o IPE Saúde diz que já foram revisados honorários médicos de consultas, visitas hospitalares e de procedimentos médicos. Com relação aos hospitais, o instituto diz que a mudança no modelo de remuneração foi considerada necessário por órgãos de controle — CAGE e Ministério Público do Estado — e o novo modelo teria um aumento de quase 90% na remuneração de taxas, diárias e serviços hospitalares.

“A valorização da classe médica é foco permanente por parte do IPE Saúde. Conforme prometido, através dos reajustes ainda em 2023, foram direcionados mais R$ 140 milhões ao ano para pagamento de honorários médicos. Com esse orçamento, as consultas médicas foram reajustadas em 20% e as visitas hospitalares em mais de 64%. Além disso, em dezembro foram reajustados 95 procedimentos médicos indicados pelas próprias entidades médicas, que participaram de todo processo”, diz nota do IPE Saúde encaminhada à reportagem.

Contudo, para entidades representativas de servidores públicos do Estado, a atual crise corrobora o alerta que sindicatos fizeram de que o aumento das alíquotas não era a solução adequada para o IPE Saúde. Além disso, avaliam que a conta do problema mais uma vez recairá sobre os servidores, dessa vez com a precarização dos serviços.

“Passados alguns meses, com relatos de que os serviços continuam precarizados, causa enorme preocupação o discurso dos empresários da saúde que o instituto lhes paga pouco e de modo atrasado, o que, no nosso entendimento, não se sustenta, vez que esses atores estão recebendo sua contrapartida em dia nos valores de mercado. Estamos pagando alíquotas mais altas em um cenário de diminuição do nosso poder aquisitivo com serviços que não vêm sendo prestados com a qualidade prometida, essa é a realidade. São muitos os gargalos responsáveis pela crise do IPE Saúde, o maior deles, sem dúvida, é o brutal congelamento dos vencimentos imposto aos servidores. As manifestações e articulações dos empresários da saúde resultarão, como sempre, em aumento das contribuições dos servidores, continuidade na precarização dos serviços e, por fim, seguindo a cartilha neoliberal, entrega do nosso instituto para a iniciativa privada”, diz nota divulgada pela Frente dos Servidores Públicos do RS (FSP), coletivo que reúne sindicatos e associações do serviço público estadual.

Neste sentido, Nelcir André Varnier, presidente do Sindicato dos Servidores de Nível Superior do RS (Sintergs), avalia que o governo erra ao apostar na taxação dos servidores como saída para o IPE, pois a consequência da medida é a perda de poder de compra das categorias, o que faz com que os servidores sejam estimulados a deixar o plano. Por outro lado, avalia que, se o governo enfrentasse a situação do congelamento salarial dos servidores, com categorias que acumulam cerca de 60% de perdas ante a inflação em nove anos, como é o caso dos representados do Sintergs — que receberam apenas um reajuste no período, 6% em 2022 –, as contribuições dos servidores aumentariam sem causar a pressão que a revisão das tarifas causou.

“O servidor não tendo a reposição de perdas, além de diminuir a contribuição pro IPE Saúde, ele acaba diminuindo sua remuneração, porque aumenta essa contribuição, então, às vezes, ele desiste, tira o filho, tira a esposa, começa a procurar algum plano que atenda a sua necessidade dentro da sua realidade remuneratória, porque ela tá bem encolhida. Tem os planos aí por R$ 50, que é bem superficial, ou começa a migrar para o SUS, que vai congestionar. Ou seja, é todo um efeito cascata consequência de uma gestão equivocada”, diz.

Auditor do Tribunal de Contas do Estado (TCE-RS) e diretor de Comunicação da União Gaúcha em Defesa da Previdência Social e Pública, Filipe Leiria pontua que a crise do IPE envolve várias camadas. A primeira delas é a defasagem dos salários dos servidores. A segunda camada seria o corporativismo da classe médica, uma disputa de interesses entre os prestadores de serviço e o governo do Estado. “Eles querem reajuste de inflação médica, índice que bateu 25% em 2023 (o índice oficial de inflação foi 4,62%). É uma categoria de trabalhadores que resiste à proletarização”, analisa. “Se o PIB do RS crescesse na velocidade da China, não daria conta de acompanhar essa inflação.”

Leiria pontua que, diante do desfinanciamento do órgão, hospitais e médicos vinham equilibrando a situação nos últimos anos por meio de gambiarras, com o subsídio cruzado que era pago com sobrepreço de valores cobrados por remédios e pela cobrança “por fora” de procedimentos.

“O que o governo Leite fez foi mexer no subsídio cruzado, pois tinha virado um monstro. Sem transparência, não se tinha mais referência de preço, o TCE-RS apontou inúmeras vezes, etc. Mas, para poder continuar repassando custo e garantir ao menos em parte a remuneração médica, fez todo um conjunto de mudanças: elevação da alíquotas conforme tabela de referência, cobrança de dependentes, etc”, diz.

Ele avalia que é difícil prever qual a solução para a crise, mas estima que deverá resultar em elevação dos custos do plano e evasão por parte dos servidores. “A massa do IPE Saúde, aproximadamente 80%, ganha até uns R$ 4 mil, a faixa etária se concentra mais em pessoas com 59 anos ou mais. Logo, baixa capacidade de pagamento e alta demanda. A sinistralidade da carteira é elevada. Em um segundo momento, no médio prazo, dado que as pessoas envelhecem e morrem, a sinistralidade da carteira tende a baixar. Talvez arrefeça um pouco a cobrança da classe médica. Ou seja, uma lógica perversa, na base da morte para equilibrar contas”, diz. “De outro lado, temos um governo comprometido com uma ideia neoliberal de fazer resultado primário, portanto não está disposto a desembolsar recursos para não representar gastos primários. O que acontece é o que vimos no ano passado, a taxação dos servidores”.

Com base em dados obtidos junto ao IPE Saúde, o deputado estadual Pepe Vargas (PT) subiu à tribuna da Assembleia Legislativa nesta terça-feira para informar que o plano de saúde dos servidores perdeu 30 mil usuários nos primeiros meses após a entrada em vigor de novas alíquotas e da contribuição por dependentes. Os números incluem redução no número de usuários dos planos Principal — composto por servidores, pensionistas e seus dependentes — e Optantes, que são ex-servidores e dependentes que optam por permanecer no plano após a perda de vínculo direto.

Outro problema apontado pelos servidores é a falta de quadro técnico no IPE Saúde, o que também seria resultado do achatamento salarial dos servidores. Em janeiro deste ano, o órgão tinha 159 trabalhadores, dois quais 99 eram concursados, 13 cedidos de outras áreas do Estado, 32 cargos comissionados e 15 temporários, para atender cerca de 1 milhão de usuários — entre os diversos planos oferecidos –, mais de 8 mil prestadores de serviços, incluindo cerca de 240 hospitais. A estimativa para dar conta da demanda seria de, ao menos, três vezes mais servidores do que o quadro atual.

Um requerimento elaborado por servidores do IPE foi entregue à direção do órgão nesta terça-feira (27) cobrando readequação salarial, melhores condições de trabalho e a recomposição de pessoal. Conforme a representação destes servidores, desde o início do ano, 10 trabalhadores já deixaram o IPE Saúde.

“O IPE hoje também carece muito de servidores para trabalhar e viabilizar a gestão, porque não há uma remuneração atrativa no mercado, principalmente para servidores de nível superior. Essa gama de servidores, hoje no mercado, tem pouco desemprego, então as pessoas não estão querendo mais ir para o serviço público. É uma bola de neve, o governo tornou o serviço público desinteressante. Veja bem, uma promoção na carreira gira em torno R$ 150 de aumento depois de três ou quatro anos de dedicação. Essa é a promoção dos servidores de nível superior. Na iniciativa privada, isso aí é um desaforo”, avalia o presidente do Sintergs.

Varnier pontua que o governo condicionou a concessão de reajustes e a reestruturação das carreiras, um dos principais pleitos do Sintergs, à Lei de Responsabilidade Fiscal e a ter margem dentro do limite prudencial. “Ocorre que saiu o relatório é nós temos essa margem, então nós temos condições plenas de reestruturar as nossas carreiras, porque hoje tem a margem fiscal. Claro, que aí ele começa a dizer que vai ter a reforma tributária, que vai diminuir a arrecadação, mas essa é uma questão para o futuro, são projeções. Como é que eu vou confiar em projeções se o governo projetou reformas que até agora não deram resultado”, afirma.


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