Saúde
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16 de junho de 2023
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09:50

Plano de novos leitos de saúde mental em hospital da Capital pode contradizer reforma psiquiátrica

Por
Luciano Velleda
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Novo hospital Sinos de Belém será inaugurado onde funcionava o Hospital Parque Belém, fechado há anos. Foto: Guilherme Santos/Sul21
Novo hospital Sinos de Belém será inaugurado onde funcionava o Hospital Parque Belém, fechado há anos. Foto: Guilherme Santos/Sul21

No dia 27 de abril, representantes do Hospital Vila Nova estiverem em audiência do Conselho Municipal de Saúde (CMS) para apresentar e prestar contas de todos os serviços contratualizados na instituição com a Prefeitura de Porto Alegre. Durante a reunião, que durou mais de três horas, vieram à tona os planos da Associação Hospitalar Vila Nova, gestora do hospital, para o futuro Hospital Sinos de Belém, que será inaugurado no antigo Hospital Parque Belém – adquirido dias antes em leilão por R$ 17,6 milhões.

Um detalhe chamou a atenção dos membros do Conselho Municipal de Saúde (CMS): a proposta para que o novo hospital tenha 240 leitos, com a maioria destinado à saúde mental. 

“Eles apresentaram todos os serviços que estão contratualizados e, no final, apresentaram um grande projeto para 2023 que é a construção de um hospital com 240 leitos, a maioria destinado à saúde mental, especialmente para a situação de dependência química”, conta a psicóloga Ana Paula de Lima, vice-coordenadora do CMS.

Ela explica que a Lei da Reforma Psiquiátrica define uma série de normas para internações em saúde mental. E uma das regras determina que as internações devem ocorrer em hospitais gerais, onde a saúde mental é uma das áreas atendidas dentro do estabelecimento. Além disso, os leitos para saúde mental não podem passar de 20% do total de leitos do hospital. “Existem limitadores. Senão você cria novos manicômios”, afirma. 

A apresentação da proposta causou ainda mais estranheza nos conselheiros porque já há denúncias de internação compulsória de pessoas em situação de rua pela gestão do prefeito Sebastião Melo. 

“A gente entende que isso é praticamente uma oferta pra Prefeitura desses leitos que, hoje, inclusive nem existem”, destaca Ana Paula.

Segundo a vice-coordenadora do Conselho Municipal de Saúde (CMS), a Prefeitura, por meio da Secretaria Municipal de Saúde, compra, em média, entre 70 e 100 leitos de saúde mental por fora das contratualizações previstas para atender demandas de internações compulsórias por decisão judicial. Nestes casos, o valor pago pela Prefeitura é de leito privado e não da tabela SUS. Quando feitas, as compras dos leitos costumam ocorrer na Clínica São José.

Ana Paula acredita que a Associação Hospitalar Vila Nova possa ter a intenção de disputar esse nicho de compra de leitos privados, pois o Hospital Vila Nova é 100% SUS, e o futuro Hospital Sinos de Belém pode ser misto, ou seja, com leitos SUS e privados.

Todavia, Dirceu Dal’Molin, diretor-geral da Associação Hospitalar Vila Nova, diz que a intenção inicial não é essa e sim fazer com que o hospital seja também 100% SUS, assim como o Vila Nova.

Dal’Molin confirma a proposta do futuro Hospital Sinos de Belém ter foco na saúde mental, principalmente em pacientes de dependência química. Ele explica que a saúde mental é uma das “demandas reprimidas da cidade”.

“Serão 50 ou 60 leitos, talvez chegando até 100”, estima. “A gente sabe dos 20%, mas em situações especiais, o Estado pode autorizar fazer um pouquinho mais. Por causa da droga, Porto Alegre está com emergências superlotadas. A ideia inicial é essa, abrir pra dependência química e ir aumentando com o tempo.”

Segundo ele, não é preciso uma legislação específica para haver essa autorização se houver uma demanda reprimida. “O Estado pode liberar, não é por lei, é uma conversa direta com a secretaria.”

A Resolução nº 217, de 2019, da Secretaria Estadual da Saúde (SES), pode ser a brecha a qual se refere o diretor. Nela, a Comissão Intergestores Bipartite/RS atualiza as normas para organização e financiamento das Unidades de Referência Especializada para Atenção Integral em Saúde Mental nos Hospitais Gerais do Estado do Rio Grande do Sul. 

O Artigo 5º da resolução estabelece que novas solicitações de habilitação de “Unidades de Referência Especializada para atenção integral em Saúde Mental em Hospital Geral” devem ser solicitadas ao Ministério da Saúde (MS), adequando-se às normas da Portaria nº 3.588/2017 do Ministério. 

O Inciso I do Artigo 5º, determina que o número de leitos de atenção integral em saúde mental não deverá exceder o percentual de 20% do número total de leitos do Hospital Geral; enquanto o Inciso II estabelece que cada unidade deverá ter no mínimo oito leitos e não poderá ultrapassar o máximo de 30 leitos.

Porém, o Inciso III pode ser o caminho para um número de leitos superior a 20%, embora sem clareza se permite chegar a quantidade de leitos prevista para o novo Hospital Sinos de Belém. Diz o trecho: “Os Projetos Técnicos que ultrapassarem os parâmetros dos incisos I e II acima poderão ser aprovados, em caráter de excepcionalidade, após justificativa à Coordenação Estadual de Saúde Mental, que levará em conta os Planos Regionais de Ação da RAPS e suas particularidades”. 

 

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Dal’Molin diz que isso já ocorre em outras cidades e cita como exemplo hospitais em Santo Antonio da Patrulha e Taquara. “A ideia é ajudar a cidade. Se você for no IAPI (emergência) e no PACS (Pronto Atendimento Cruzeiro do Sul), tem uma média de 50 a 70 pacientes internados há mais de cinco dias. A ideia é ajudar nessa situação, uma coisa temporária. O que vier a gente abraça”, afirma.

A resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de fechar os hospitais de custódia e tratamento psiquiátricos, conhecidos como “manicômios judiciários”, também está no horizonte do gestor. Há a perspectiva de receber a demanda que surgirá com o fim dos hospitais de custódia.

O diretor-geral da Associação Hospitalar Vila Nova destaca que, com o tempo, haverá um planejamento mais amplo do futuro Hospital Sinos de Belém, que incluirá a abertura de UTI, novos blocos, emergência e unidades de internação. O funcionamento pleno do novo hospital deve ocorrer em cerca de seis a oito meses.

Para que tudo aconteça até a abertura, ele enfatiza que o novo hospital precisa ser cadastrado junto ao Ministério da Saúde e prevê contar com apoio do governo estadual e da Prefeitura.

“É serviço novo, então vai ter mais valor. O município também tem que ajudar…estamos fazendo uma parceria com município, estado e União para abrir o hospital com os ‘pés no chão’, com os recursos direitinho”, comenta.

Procurada pela reportagem do Sul21, a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) negou que haja qualquer negociação em curso.

“Até o momento, não houve por parte da Associação a apresentação ou formalização de projeto para este local recém adquirido. A SMS age sempre de acordo com a política pública definida pelo município”, diz a secretaria.

A Associação Hospitalar Vila Nova arrematou em leilão, no final de abril, por R$ 17,6 milhões, o antigo Hospital Parque Belém. O leilão foi homologado no início de maio, mas em seguida houve um recurso interposto pelo antigo proprietário, o Sanatório Belém e pela empresa Rickes Comercial Ltda, para embargar a venda.

Nesta semana, o juiz Carlos Busatto, do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (TRT4), não aceitou os embargos e concedeu a emissão de posse do imóvel para a Associação Hospitalar Vila Nova. 

A estimativa é que isso ocorra na próxima semana. A partir daí, a previsão é que o novo hospital Sinos de Belém abra suas portas em 30 dias.


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