Saúde
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1 de junho de 2023
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08:37

Governo Melo é acusado de internação forçada de pessoas em situação de rua; Prefeitura nega

Por
Luciano Velleda
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Debate durou mais de 3h e contou com a participação de especialistas e trabalhadores da área de saúde mental. Foto: Luiza Castro/Sul21
Debate durou mais de 3h e contou com a participação de especialistas e trabalhadores da área de saúde mental. Foto: Luiza Castro/Sul21

Membros do Conselho Municipal de Saúde (CMS), trabalhadores da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e representantes de pessoas em situação de rua têm denunciado a política do prefeito Sebastião Melo (MDB) contra essa parcela da população de Porto Alegre. A crítica se concentra no que seriam práticas higienistas e manicomiais por meio de ações de internação compulsória e remoções de pessoas em situação de rua de determinados bairros da cidade.

A origem das denúncias são pessoas anônimas ligadas à Rede de Atenção à Saúde, principalmente vinculadas aos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e aos Consultórios na Rua.

O tema veio à tona no debate promovido pelo CMS na última quinta-feira (25), na Câmara de Porto Alegre, também impulsionado por declaração recente de Melo em que negou ser um governo higienista, mas afirmou que não irá “permitir mais essa quantidade de barracas que tem na cidade”. Segundo o Conselho Municipal de Saúde (CMS), o alerta se justifica em razão de a Prefeitura não apresentar nenhum plano efetivo para a questão, combinado com a grande carência de serviços públicos que deem conta do assunto na Capital.

“Toda a ação de saúde mental e a Política de Saúde Mental devem estar guiadas pela Lei Federal 10.216 de 2001, que estabelece que as internações são o último recurso dentro das ofertas de cuidado e da rede. A gente precisa ofertar para as pessoas o cuidado territorial, com serviços substitutivos”, afirmou a psicóloga Ana Paula de Lima, vice-coordenadora do CMS.

No encontro, ela leu a moção apresentada pela delegação de Porto Alegre e aprovada na 9ª Conferência Estadual de Saúde, realizada em maio. O documento repudia o que define como “ações de higienização sobre a população em situação de rua impostas pelo governo Melo a serviço dos interesses de construtoras e da especulação imobiliária”, ferindo os direitos humanos, os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) e as diretrizes da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). A moção também rechaça o uso da Rede de Atenção à Saúde, como o SAMU, em ações de internações involuntárias da população em situação de rua – o que desvia a Rede de Atenção Psicossocial da finalidade de cuidar das pessoas, conforme estabelecido na Lei 10.216/2001, que orienta o modelo assistencial de saúde mental no Brasil.

A Prefeitura, por meio da Secretaria Municipal de Saúde (SMS), refuta as acusações (leia nota completa abaixo) e diz que o debate no Conselho Municipal de Saúde (CMS) lhe “pareceu um tanto fora de contexto”.

A psicóloga explica que o governo Melo não informa quantas internações compulsórias de pessoas em situação de rua foram feitas em 2023, assim como na série histórica dos últimos anos. Outro complicador é a não distinção da pessoa viver em situação de rua no momento da internação. Em contato com a reportagem do Sul21, a SMS afirma ter havido apenas duas internações involuntárias por riscos de vida em 2023.

“Inclusive, as equipes de saúde e de assistência social têm acompanhado casos como esses, a fim de poder construir a possibilidade, intersetorialmente, de acolher as pessoas saídas das internações, em locais de proteção como abrigos ou residenciais terapêuticos”, explica a secretaria.

Diante da falta de informações, a vice-coordenadora do CMS cobra que a Prefeitura crie a comissão revisora de internações psiquiátricas, segundo estabelecido na Portaria 2.048/2009 do Ministério da Saúde.

“A gente entende que as internações deveriam ser monitoradas pela Coordenadoria de Saúde Mental da secretaria. Ela tem o número total de internações, mas essa informação de quantas internações são involuntárias, a gente não tem, e é exatamente isso que estamos denunciando”, afirma Ana Paula, destacando que a legislação trata a internação compulsória como o último dispositivo, quando esgotadas as outras ofertas de cuidado.

“A internação não pode ser a primeira oferta. A gente não pode deixar acontecer a associação entre remoção e, na hora da remoção, ser encaminhada uma internação involuntária sem aquela pessoa ter garantia de acesso ao atendimento e à rede anteriormente”, completa. “Isso deveria estar sendo monitorado não só para a população em situação de rua, mas para todas as internações em saúde mental e as involuntárias mais ainda, porque há o encaminhamento que deve ser feito em até 48 horas para o Ministério Público ter conhecimentos de que houve uma internação involuntária e hoje a gente não sabe se está acontecendo.”

Ela explica que o foco maior na população em situação de rua deve-se ao fato da maior vulnerabilidade, sem suporte familiar para acompanhar se houver alguma violação de direito. A psicóloga ressalta ainda haver casos de internações voluntárias que se transformam em involuntárias, na medida que a pessoa não queira mais ficar internada. Por isso, cobra transparência do governo Melo com as informações.

Outro questionamento se refere ao número de dias de internação. Nota Técnica da Secretaria Municipal de Saúde (SMS) emitida em fevereiro deste ano estabelece até 90 dias. O prazo, afirma a vice-coordenadora do Conselho Municipal de Saúde (CMS), é bem superior aos 21 dias estabelecido nos princípios e normativas sobre internações involuntárias de saúde mental. Em resposta, a SMS diz que o prazo de permanência das pessoas nos espaços de internação “se dá conforme cada caso acompanhado”.

Defensor Público Geórgio da Rosa disse que acordo de 2022 sobre abordagem humanizada não tem sido cumprido. Foto: Luiza Castro/Sul21

Durante a plenária do Conselho Municipal de Saúde (CMS), trabalhadores do Consultório na Rua Centro, responsável pelo atendimento da população em situação de rua, expuseram a dificuldade da equipe em participar das abordagens realizadas pela Prefeitura. Isso porque o trabalho deles depende da criação de vínculo e confiança por ser um dispositivo de cuidado da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS).

“Ficamos muitas vezes numa situação tensa e delicada frente a este contexto das remoções, uma vez que somos um dispositivo público de cuidado a essas pessoas (…) Nossa função, enquanto profissional de saúde, passa também pela garantia de direitos”, argumentou Felipe Costa.

“É uma angústia a forma como nosso paciente vem sendo tratado enquanto rede e enquanto assistência. A gente se depara com diversas situações bem complicadas, como essas internações involuntárias, não podemos simplesmente pegar estas pessoas e colocar num leito de internação. Muitas vezes chega até nós, em forma de pressão, para fazermos estas internações involuntárias, que precisam do SAMU, da Guarda (Municipal) e da Brigada”, afirmou Laysa Bianca Dias de Souza, também do Consultório na Rua.

Em nota, a Secretaria Municipal da Saúde (SMS) diz que todas as alternativas são tentadas antes de se decidir por uma ação involuntária.

“Enquanto gestores das áreas técnicas de saúde, realizamos o que sempre esteve nos princípios da equidade e do cuidado em liberdade. Para as pessoas em situação de rua, com saúde mental agravada, tentam-se todas as alternativas de ações possíveis para vincular essas pessoas aos serviços. Somente quando não se consegue garantir o cuidado e há riscos de vida iminentes, é que se constrói a possibilidade de um cuidado mais involuntário, pois o Estado não pode olhar para uma mulher em situação de rua, completamente exposta, por exemplo, física e moralmente, em sofrimento psíquico e com risco iminente de vida e não se responsabilizar. Essas situações sempre existiram no fazer das equipes que acompanham pessoas em situação de rua e o fazem com muita responsabilidade”, afirma o órgão.

Defensor Público da União, Geórgio Endrigo Carneiro da Rosa trabalha com a população em situação de rua desde 2014. Na plenária promovida pelo Conselho Municipal de Saúde (CMS), ele destacou o descumprimento do resultado de uma Ação Civil Pública de 2019, na qual ficou acordada a necessidade de ajustes nas abordagens feitas pelo poder público junto a essa população.

O documento pactua que as abordagens devem ser humanizadas, respeitosas e de forma “multiportas”, com a população em situação de rua sendo atendida nos espaços que frequenta (como saúde e assistência social) e com oferta de alternativas, como o auxílio-moradia. Outro ponto importante é o registro de todas as abordagens em Sistema Eletrônico de Informações (SEI) e disponibilização para todos os órgãos de controle externo, além da criação de um aplicativo para que a sociedade civil possa apoiar as pessoas que precisam.

“Este acordo foi firmado em julho de 2022, estamos em maio de 2023, e boa parte destas questões ainda não foram retiradas do papel”, afirmou, criticando que o Estado só aparece para remover as pessoas em situação de rua e não para garantir direitos. “Recursos existem, e também não temos uma população em situação de rua tão grande quanto em outras metrópoles do País. Então é viável, com apoio dos entes federados, chegarmos a uma boa solução para estas questões.”

Especificamente em relação à saúde, o defensor público disse que é fundamental a criação de unidades de acolhimento na cidade. “A gente sabe que boa parte dessa população precisa de assistência em saúde mental. Não há acolhimento. São equipamentos necessários para atender de forma adequada esta população, fariam a retaguarda importante aos Centros de Atenção Psicossocial”, ponderou.

Cícero Adão Gomes morou 20 anos na rua, sofreu mais de 150 remoções e viu seu remédio de tuberculose ser jogado no caminhão de lixo. Foto: Luiza Castro/Sul21

“Meu nome é Cícero, sou um ex-morador de rua, morei por 20 anos em situação de rua aqui em Porto Alegre. Hoje eu tenho orgulho de dizer que sou educador social do CAPS e que a população de rua tem saída. Mas não foi só um ou dois projetos que me organizaram, foram vários.”

Assim se apresentou Cícero Adão Gomes, do coletivo PopRua. Ele também enfatizou que faltam equipamentos especializados para tratamento de saúde mental e contou ter tido o privilégio de escolher qual tratamento faria.

“Não adianta pegar a pessoa e colocar dentro de uma comunidade terapêutica. Um dependente químico trancado dentro de uma peça é igual um leão querendo sair da jaula”, analisou, questionando a capacidade de uma pessoa com a saúde mental abalada em se tratar numa comunidade terapêutica. Para ele, cada equipamento especializado deve ter uma função e cada indivíduo precisa de um tratamento específico.

“Sei o que é o tratamento no CAPS e o que é lá na comunidade. É muito difícil fazer dois tratamentos ao mesmo tempo. Pode resolver por um tempo, mas a outra doença vai surgir. É muito difícil a pessoa entender que tem que fazer dois tratamentos ou que ela tem que tomar daqui duas horas o medicamento, mas se tem um centro que ela vai ficar e com pessoas especializadas para cuidar dela, ela vai se comprometer”, ressaltou.

Durante o período em que viveu na rua, Gomes teve três tuberculoses, sofreu mais de 150 remoções e viu seu remédio da tuberculose ser jogado dentro do caminhão de lixo e triturado. “Nunca vou esquecer disso.”

Recentemente, contou ter filmado uma ação de remoção no 4º Distrito. Uma “varredura”, definiu. “Ontem eu tava no papelão, hoje estou aqui, tenho meu apartamento, minha esposa. Ninguém sabe a vida de ninguém se não sentar e conversar.”

Maria Gabriela Godoy, professora de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e integrante do projeto “Passa e Repassa”, disse que as ações higienistas sofridas pela população de rua são resultado do modo de pensar o projeto de cidade do governo Melo. Um projeto que, avalia, prioriza o mercado financeiro e expande as desigualdades sociais.

“A cidade vai varrendo as populações consideradas indesejáveis e o projeto neoliberal tem intensificado isso a partir da associação de grandes interesses, como o mercado imobiliário, de construtoras, de bancos e de gestões que se aliam a esta lógica. Vide o que vem acontecendo aqui, no 4º Distrito, na Orla e até a Ponta do Arado, em Belém”, explicou.

A professora apresentou números em relação aos serviços que são ofertados e à demanda da população em situação de rua. Segundo ela, 46% dessa população não tem acesso a alimentação ofertada pela Prefeitura, conforme dados do Sistema de Gestão de Parcerias do Município. Analisando os contratos do Município em relação às vagas de espaços protetivos para permanência noturna ou 24h, ela apontou que 40% da população de rua não tem acesso a elas.

Com relação ao número de pessoas em situação de rua na capital gaúcha, Maria Gabriela destacou a inconsistência dos dados da Prefeitura. Sem tal informação, ela alertou, não é possível construir uma oferta de serviços adequada. Conforme sua análise, a Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC) trabalha com um registro de 2.518 pessoas, porém, no último quadrimestre de 2022, o relatório da Secretaria Municipal de Saúde (SMS) registrava 9.307 cadastros de pessoas em situação de rua atendidas pelas quatro equipes de Consultório na Rua.

“Não tenho como afirmar este número, porque os dados da Assistência não batem com os da Saúde”, disse a professora.

Professora da UFRGS, Maria Gabriela Godoy questionou os números divergentes sobre a população em situação de rua em Porto Alegre. Foto: Luiza Castro/Sul21

“A Área Técnica da Saúde da População em Situação de Rua, da Secretaria Municipal de Saúde, tem trabalhado cotidianamente com as equipes de Abordagem Social da FASC, junto aos Consultórios na Rua e aos trabalhadores dos CAPS, questões do dia-a-dia de trabalho, que dizem sobre a garantia de direitos à saúde, direitos humanos e busca de melhoria na qualidade do acesso aos serviços de saúde para as pessoas em situação de rua. 

Todas as notas técnicas advindas dessa área, junto à Coordenação de Saúde Mental e protocolos realizados junto aos serviços de SAMU, vem no sentido de atender e garantir a integralidade do cuidado.

Nesse sentido, o debate feito na plenária do Conselho Municipal de Saúde, do ponto de vista de quem tem tentado garantir direitos, nos pareceu um tanto fora de contexto.

Enquanto gestores das áreas técnicas de saúde, realizamos o que sempre esteve nos princípios da equidade e do cuidado em liberdade. Para as pessoas em situação de rua, com saúde mental agravada, tentam-se todas as alternativas de ações possíveis para vincular essas pessoas aos serviços. Somente quando não se consegue garantir o cuidado e há riscos de vida iminentes, é que se constrói a possibilidade de um cuidado mais involuntário, pois o Estado não pode olhar para uma mulher em situação de rua, completamente exposta, por exemplo, física e moralmente, em sofrimento psíquico e com risco iminente de vida e não se responsabilizar. Essas situações sempre existiram no fazer das equipes que acompanham pessoas em situação de rua e o fazem com muita responsabilidade.

Tanto acontecem de forma bastante espaçadas, que tivemos duas internações involuntárias por riscos de vida no ano de 2023. Quanto ao prazo de permanência das pessoas nos espaços de internação, ele se dá conforme cada caso acompanhado.

Inclusive, as equipes de saúde e de assistência social tem acompanhado casos como esses, a fim de poder construir a possibilidade, intersetorialmente, de acolher as pessoas saídas das internações, em locais de proteção como abrigos ou residenciais terapêuticos.

A Nota técnica sobre os tipos de internações existentes foi construída, entre áreas técnicas da saúde da População em Situação de Rua e Coordenação de Saúde Mental, justamente, porque sempre existiram dúvidas dos trabalhadores sobre isso e, para garantir, exatamente, que o tratamento de defesa da vida possa prevalecer no percurso de cuidado em saúde dessas pessoas.

Existe uma composição de equipes hoje atendendo as pessoas em situação de rua, que se chama: juntos na rua. Essas equipes acompanham casos complexos de pessoas com sofrimento psíquico nas ruas e realizam, semanalmente, reuniões de matriciamentos e discussões de casos, a fim de tentar realizar acompanhamentos que possam vincular os casos mais difíceis de pessoas que não aceitam as ofertas de acolhimento ou de tratamentos.

Temos realizado busca ativa para abandonos de tuberculose, tratamentos para hepatites virais e outros agravos determinantes nessa população. Junto aos CAPS, trabalhamos com o vínculo de cuidado comunitário, a partir do tempo e do desejo dos sujeitos, dando voz e protagonismo aos mesmos na construção de seus planos terapêuticos no sentido da busca da autonomia.”


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