Saúde
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8 de junho de 2023
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14:30

HIV: Profilaxia pré-exposição ainda enfrenta dificuldade para se expandir em Porto Alegre

Por
Luciano Velleda
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Medicamento de Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) está disponível em Porto Alegre desde 2018. Foto: Ludmilla Souza/Agência Brasil
Medicamento de Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) está disponível em Porto Alegre desde 2018. Foto: Ludmilla Souza/Agência Brasil

Embora não seja novidade, é sempre importante quando autoridades se encontram para discutir estratégias capazes de mudar a triste realidade do Rio Grande do Sul ser o estado brasileiro com o maior número de casos de pessoas infectadas com HIV. Foi o que aconteceu na última segunda-feira (5), quando a Comissão de Cidadania e Direitos Humanos realizou audiência pública para discutir o cenário da epidemia de HIV/Aids no RS. 

Além de liderar a estatística geral, o estado lidera também as taxas de detecção de HIV em gestantes, com um coeficiente quase três vezes maior do que a média nacional e maior coeficiente de mortalidade. Os dados foram apresentados na audiência pelo representante do Ministério da Saúde, Dráurio Barreira. 

O caminho para mudar esse cenário não é simples. Para chegar lá, além de um conjunto de medidas como testagem, tratamento com antiretroviral e Profilaxia Pré-Exposição (PrEP), ainda é necessário combater o estigma, o preconceito, a homofobia e a transfobia, além de políticas de distribuição de renda e assistência social.

Com relação a PrEP, a realidade de Porto Alegre exemplifica o tamanho da dificuldade. Embora o medicamento possa ser prescrito por qualquer médico, desde que identifique a condição de risco do paciente, e os remédios estejam disponíveis no Sistema Único de Saúde (SUS) desde 2018, a estratégia não deslancha como deveria. 

Eduardo Sprinz, chefe do serviço de infectologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), diz ser preciso “batalhar” pela PrEP na capital gaúcha, pois há muitas barreiras a serem vencidas. Ele explica que a população mais vulnerável ao HIV, ou seja, que se expõe mais ao sexo livre, como profissionais do sexo, correm maior risco de contaminação e, portanto, são indicadas para usar a profilaxia pré-exposicão. 

“De forma alguma estamos estimulando o sexo. O que a gente está fazendo é uma forma de poupar, de preservar pessoas que se contaminarão de diversas infecções sexualmente transmissíveis, incluindo a infecção pelo HIV”, explica.

O infectologista destaca que no universo da população mais vulnerável ao HIV, 10% corre o risco de ser contaminada com o vírus, índice considerado elevado. “O que a gente está fazendo com a PrEP é evitar que 10% dessas pessoas virem HIV positivos. A gente ensina as pessoas a se relacionarem de forma segura. Numa população vulnerável, a cada ano até 10% dela vira HIV positivo.”

A falta de conhecimento e de acesso ao medicamento tem sido um problema para que as pessoas mais vulneráveis possam se proteger. Sprinz enfatiza que no exterior já existem medicamentos injetáveis com efeito duradouro de um a dois meses – no Brasil, essa alternativa ainda não está disponível. 

“Existem métodos, existem procedimentos, a gente tem medicamentos disponíveis no SUS, em breve na formulação injetável, que podem ajudar a prevenir a infecção nas populações mais vulneráveis”, salienta.

O caminho para ter o medicamento em mãos parece ser um dos entraves. A PrEP não é comprada em farmácia, somente em lugares especializados. A pessoa interessada precisa primeiro passar por uma consulta médica e ter em mãos a receita do remédio – a consulta pode ser com um médico privado ou na rede pública de saúde. 

“São diversos entraves, desde a falta de acesso ao serviço público no Rio Grande do Sul. Os mais esclarecidos sabem como fazer e procuram os médicos para fazer”, afirma o chefe do serviço de infectologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. 

Em Porto Alegre, a profilaxia pré-exposição é feita com o medicamento Truvada (Tenofovir + Emtricibatina) usado uma vez por dia. O paciente deve ir num dos quatro Serviços de Atendimento Especializado ou em algum dos 14 postos de saúde aptos a fazerem a avaliação inicial. O medicamento depois é retirado em locais específicos.

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A razão para o elevado número de casos de pessoas com HIV no Rio Grande do Sul é um fenômeno muito complexo, na análise de Eduardo Sprinz. Isso inclui ainda existirem muitas pessoas suscetíveis ao HIV na população mais exposta. E enquanto existirem pessoa suscetíveis, novos casos acontecerão – a pandemia da covid-19 mostrou bem como isso funciona.

Ainda assim, a análise leva ao questionamento: O que diferencia o RS de outros estados do País em relação aos grupos mais vulneráveis? Em comparação com São Paulo, por exemplo, Sprinz pondera que o estado paulista está melhor estruturado com a PrEP. 

Mas não é só isso. Professor da Universidade de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), o ginecologista e obstetra Régis Kreitchmann acrescenta outro ponto para explicar o cenário do HIV no Rio Grande do Sul. Ele comenta que o tema costuma ser muito debatido nos dias próximos ao 1ª de dezembro, o Dia Mundial de Luta contra Aids, mas cai no esquecimento no resto do ano. Acrescenta também a agenda muito moralista do governo de Jair Bolsonaro (PL) nos últimos anos, o que impactou todas as políticas de aids e as campanhas de prevenção ao HIV no País.

“Tudo se desorganizou e o sistema de saúde foi muito impactado pela pandemia também. A parte de testagem ficou sobrecarregada, se fazia muito teste de covid e não se fazia teste de HIV. Houve todo um retrocesso no sistema e agora que está se reorganizando o sistema de saúde, a política de aids está retomando seus programas e atividades, e está se querendo avançar de novo e recuperar o que se perdeu”, analisa Kreitchmann.

O machismo é outra característica do gaúcho que pode colaborar para explicar a epidemia de HIV no RS, bem à frente de outros estados brasileiros. Por essa hipótese, assumir a homossexualidade é mais difícil no RS, o que também leva muitos homens a manterem relacionamentos heterossexuais com mulheres apenas “de fachada” – o que, por sua vez, tem como consequência o alto índice de mulheres contaminadas por seus companheiros. 

“Isso atrapalha bastante pra pessoa ‘sair do armário’, poder expor seu relacionamento e então procurar um cuidado de saúde melhor. Acho que isso é um fator. Mas também, no passado, a droga injetável entrou muito forte no estado, com o uso compartilhado de seringas. Hoje não é mais a droga injetável, mas o crack está presente”, avalia.

Régis Kreitchmann reforça a necessidade da pessoa ser avaliada no sistema de saúde antes de começar a usar o medicamento da PrEP. A questão é justamente chegar num posto. 

“O sistema tem barreiras especialmente para esse público, que é o homem que faz sexo com homem, usuários de drogas, profissionais do sexo, trans, é todo público que mais se infecta com HIV e seria elegível pra PrEP. É uma enorme dificuldade”, afirma. “A gente vê poucos homens no posto de saúde, a gente não vê travestis, transexuais, prostitutas, tem muito preconceito ainda.” 

Além da dificuldade dos grupos mais vulneráveis em acessarem o sistema de saúde, o professor da UFCSPA pondera haver pacientes que não se sentem em situação de risco ou não acham que têm risco aumentado em se contaminar com o HIV. Por isso, ele explica, é importante haver o profissional com sensibilidade para ouvir e conversar sobre a vida sexual do paciente. 

“Tem que ter sigilo, privacidade, um ambiente mais acolhedor, para poder conversar sobre qual é o tipo de sexo que está sendo praticado, qual é o nível de risco que aquela pessoa tem, pra então identificar e conseguir conversar e passar essa ideia de que a gente pode reduzir o risco usando a PreEP”, explica Kreitchmann.

Uma vez passada por toda a etapa de atendimento, o paciente recebe pelo SUS o medicamento para um mês de uso. A cada três meses, o teste de HIV precisa ser repetido para confirmar que a pessoa está negativa.

“É um caminho um pouco trancado, e as pautas conservadoras atrapalharam muito. Tínhamos um número de pacientes usando PrEP antes da pandemia e reduziu para menos de um terço. E tem que ter adesão, ter o trabalho de manter o paciente, ter  consultas a cada três meses”, destaca. 

O vírus da aids começou a assombrar o mundo no começo dos anos de 1980. Desde então, a ciência evoluiu muito, os medicamentos antiretrovirais trouxeram qualidade de vida para pessoas soro positivas e a mortalidade diminuiu. Todavia, mais do que tratamentos eficazes para quem já se infectou, o desafio maior é reduzir a quantidade de novos casos. Remédio já existe.


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