Eleições 2022
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16 de outubro de 2022
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23:44

Debate entre Lula e Bolsonaro na Band expõe encruzilhada histórica brasileira

Por
Marco Weissheimer
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Lula procurou falar sempre Bolsonaro, no debate da Band (Band/Reprodução)
Lula procurou falar sempre Bolsonaro, no debate da Band (Band/Reprodução)

O debate entre Lula e Bolsonaro, na noite deste domingo, na TV Bandeirantes, foi, de um modo peculiar, até civilizado. E a palavra “civilizado” aí pode ser entendida em um duplo sentido. Foi civilizado porque, considerando o clima da campanha eleitoral nos últimos dias, os dois candidatos estiveram lado a lado como nunca estiveram e, apesar da tensa e pesada troca de acusações, propiciaram alguns momentos de bom humor, provocados especialmente pela desenvoltura de Lula diante das câmeras e no palco do debate que provocaram em Bolsonaro, em vários momentos, silêncios prolongados e risos mais ou menos nervosos. Mas foi civilizado também em outro sentido, mais importante que o primeiro, pois expôs que o Brasil, no segundo turno das eleições presidenciais, está diante de uma encruzilhada. Uma encruzilhada civilizacional.

No final do debate, em suas considerações finais, Bolsonaro deixou claro o país que pretende construir. O atual presidente listou os itens de seu programa: um país livre, com liberdade de expressão (que tem a peculiaridade de parecer não se aplicar a quem pensa diferente), com respeito à propriedade privada, segurança, direito à ‘autodefesa’, sem ideologia de gênero, sem drogas, onde “nossos filhos não irão frequentar o mesmo banheiro”, sem aborto e não ao MST invadindo terras. Bolsonaro também apontou uma série de governos “inimigos” na América Latina, com destaque para Argentina, Colômbia, Venezuela, Bolívia, Cuba e Nicarágua. A obsessão com a Venezuela, aliás, acabou pregando uma peça irônica a Bolsonaro em função do episódio narrado pelo próprio sobre um encontro com “meninas bonitinhas venezuelanas” em Brasília,

Já Lula falou de uma agenda de reconstrução do país, de retomada dos programas de inclusão social, de combate à desigualdade de renda, de promoção do emprego, de desenvolvimento da indústria nacional, da interrupção da atual política de desmatamento e destruição da Amazônia e de outros biomas brasileiros, da recuperação da credibilidade do Brasil no cenário internacional. Sobre o tema da liberdade de expressão, Lula assinalou, em suas considerações finais, que foi ele quem aprovou a lei de liberdade religiosa em 2013 e que o país tem hoje cerca de 33 milhões de pessoas passando fome, muitas delas na “fila do osso”, o que não é uma metáfora. E destacou o seu compromisso de “trazer o povo mais pobre para a cidadania outra vez”.

Quando Bolsonaro colocou a mão no ombro de Lula…

O modelo do debate promovido pela Band, em parceria com a TV Cultura de São Paulo, Folha de S.Paulo e UOL, entre outros veículos, propiciou um palco aos dois candidatos. Com mais desenvoltura, Lula foi o primeiro a sair de trás do púlpíto e a caminhar pelo palco em direção às câmeras, postura que repetiu ao longo de todo o debate. Bolsonaro pareceu surpreendido com a mobilidade do adversário e passou a tentar imitá-lo depois que ele fez esse primeiro movimento pela primeira vez. Tenso e contido, Bolsonaro pareceu ficar sem resposta diante de várias falas de Lula. Em determinado momento, procurou criar um clima amistoso, chegando a colocar a mão no ombro de Lula, dizendo “fica aqui”. O debate foi dividido em três blocos de perguntas e respostas, feitas por jornalistas e pelos candidatos entre si, e um bloco de considerações finais.

Nos bastidores, chamou a atenção a presença do ex–juiz e ex-ministro da Justiça, Sergio Moro, como assessor de Bolsonaro. Já Lula chegou ao debate com um broche da Faça Bonito, Campanha Nacional de Mobilização de Combate à violência sexual contra crianças e adolescentes, um recado direto a Bolsonaro que, na véspera do debate, enfrentou um novo escândalo causado por ele próprio ao falar sobre um encontro que teve com adolescentes venezuelanas de 13-14 anos, em uma comunidade pobre de Brasília, onde teria “pintado um clima”.

Lula cobra consequências do negacionismo na pandemia

Apesar de a primeira pergunta no primeiro bloco ter tratado dos recursos orçamentários disponíveis para o Executivo em 2023, o tema dominante, por iniciativa de Lula, foi a pandemia e a conduta do governo brasileiro ao longo dos anos de 2020 e 2021. O candidato do PT questionou a postura negacionista de Bolsonaro ao longo da pandemia e responsabilizou o atual presidente por cerca de 400 mil mortes que poderiam ter sido evitadas. Lula bateu forte: “O senhor atrasou a chegada das vacinas. O senhor adotou uma postura negacionista diante da covid, dizendo que se tratava apenas de uma gripezinha. Se não fosse a sua negligência, mais da metade das pessoas que morreram na pandemia poderiam ter sido salvas. O senhor desacreditou a vacina, disse que as pessoas poderiam virar jacaré ou homossexuais, imitou pessoas com falta de ar, virou vendedor de um remédio que não servia para nada, não respeitou o Butantã e a Fiocruz”.

Visivelmente desconfortável e na defensiva, Bolsonaro disse que tudo isso era mentira, mas logo em seguida, repetiu várias das críticas que fez ao distanciamento social e à vacina. “Na questão do tratamento precoce, tirou-se a autonomia do médico. Não imitei as pessoas com falta de ar. Foi o contrário (sic). Recomendei aos mais idosos e às pessoas com comorbidade que ficassem em casa”, afirmou o atual presidente, que criticou a conduta da Rede Globo neste processo e também do médico Drauzio Varela, sem maiores justificativas ou explicações. Lula lembrou que perdeu pessoas na pandemia, como a sua sogra, e também cobrou o fato de Bolsonaro não ter visitado nenhuma família que perdeu pessoas na pandemia, e ter ido ao enterro da rainha Elizabeth, na Inglaterra. A resposta de Bolsonaro foi: “Fez discurso em cima do caixão da esposa e está se comovendo com a sogra. Eu me comovi, sim”, assegurou.

As armas de Bolsonaro: Marcola e Petrolão

Nos dois blocos seguintes, Bolsonaro tentou sair das cordas atacando Lula em dois temas: uma suposta relação de Lula com Marcola, liderança do crime organizado, e o tema da corrupção, em especial do “petrolão”, como referiu várias vezes. “Por que o senhor não transferiu Marcola em 2006? Tive que chegar eu em 2009 e transferir Marcola de um presídio estadual em São Paulo para um presídio federal”, questionou Bolsonaro. A resposta de Lula veio rápida e lembrou o assassinato da vereadora do PSOL, Marielle Franco, no Rio de Janeiro. “Quem tem relação com crime organizado e milicianos não sou eu. Eu construí cinco prisões de segurança máxima em meu governo. Quantas você fez? Nenhuma”, emendou Lula, repetindo questionamento que havia feito no primeiro bloco sobre o número de universidades e institutos federais que Bolsonaro teria criado.

Ao replicar a resposta de Lula, Bolsonaro escorregou ao mencionar a recente visita de Lula ao Complexo do Salgueiro, no Rio de Janeiro. “O senhor esteve no Complexo do Salgueiro e só tinha traficante ao seu redor”. Lula não desperdiçou a chance e emendou: “Sou o único candidato a presidente da República que tem coragem de entrar em favela. Não tinha bandido lá, Bolsonaro, tinha homens e mulheres trabalhadores e trabalhadoras que acordam muito cedo pra ir trabalhar. Você é que tinha um vizinho seu cheio de fuzis em casa. O senhor sabe onde estão os bandidos”.

Mudanças no STF e fake news

No segundo bloco, jornalistas fizeram perguntas aos dois candidatos. Um dos principais momentos foi o reencontro da jornalista Vera Magalhães, da TV Cultura de São Paulo, com Bolsonaro que a hostilizou fortemente em um debate anterior. “Prezada jornalista Vera, satisfação em revê-la”, disse Bolsonaro. A pergunta tratava da posição dos dois candidatos sobre a independência dos poderes e a relação com o Supremo Tribunal Federal (STF). Lula lembrou que o Brasil teve uma experiência de mudança na estrutura do STF, por iniciativa do Executivo, durante a ditadura militar. “Não é prudente o presidente da República ter os ministros do STF como amigos. Tentar mexer no STF para colocar seus amigos lá é um retrocesso que a República já conhece. 

“Da minha parte está feito o compromisso” (de não mudar a composição do STF), afirmou Bolsonaro, que logo em seguida fez uma ressalva. “O PT tem sete ministros indicados, eu tenho dois. No próximo governo eu poderei indicar mais dois, aí ficará 5×4, que é mais equilibrado”.

O segundo bloco também tratou da questão do uso de fake news durante a campanha eleitoral. Neste tema, Lula fez uma referência indireta ao escândalo do “pintou um clima” que envolveu Bolsonaro na véspera do debate.  “A mentira faz parte da vida dele. Ele levanta de madrugada para fazer live e contar mentira”, disse Lula, referindo-se à live realizada por Bolsonaro na madrugada do domingo para tentar estancar a sangria provocada por suas próprias declarações a respeito do encontro com adolescentes venezuelanas em Brasília.

No terceiro bloco, Bolsonaro focou no tema da corrupção na Petrobras, tentando vincular Lula ao “petrolão”, que definiu como “o maior esquema de corrupção da história da humanidade”. “Como é que o senhor explica o petrolão?”, questionou. Lula respondeu que não tinha nenhum problema em falar do “petrolão” e que no governo dele, nada ficou escondido, graças a instrumentos como a Lei de Acesso à Informação e ao Portal da Transparência. Não tinha sigilo como o senhor instalou em seu governo. Se houve corrupção na Petrobras, que os culpados fossem punidos, mas não era preciso quebrar as empresas. Na Coreia não fecharam a Samsung, quando descobriram casos de corrupção. Na Alemanha não fecharam a Volkswagen”, disse Lula que prometeu levantar todos os sigilos decretados por Bolsonaro quando assumir a presidência em 2023. “Eu vou ganhar as eleições e quando chegar 1º de janeiro, eu vou pegar o seu sigilo e vou mostrar ao povo brasileiro, para ele saber porque você esconde tanta coisa”.

Lula promete criar Ministério dos Povos Originários

Ainda no terceiro bloco, Lula questionou Bolsonaro sobre o desmatamento da Amazônia e sobre o impacto que isso vai ter para o comércio exterior brasileiro, em especial para o agronegócio. “Vocês estão brincando de desmatamento e vão ver o que vai acontecer por causa disso com o nosso comércio exterior. O senhor não tem o menor respeito pela Amazônia. Nenhum país te convida para ir pra lá e ninguém vem aqui também. Isso vai acabar. No meu governo, o Brasil vai ter um Ministério dos Povos Originários e os povos indígenas vão indicar o ministro”, anunciou Lula. Bolsonaro respondeu dizendo que o desmatamento da Amazônia no governo Lula foi maior do que o no seu governo, mas não apresentou nenhuma prova disso. “Põe no Google aí”, afirmou.

Lula obteve o único direito de resposta de todo o debate, motivado por uma fala de Bolsonaro, segundo a qual o candidato do PT só teria “traficantes” à sua volta.  Entre verdades e mentiras, foram quase duas horas de debate, que teve desdobramentos quase imediatos nas redes sociais. Durante o debate, Bolsonaro atribuiu ao ex-presidente da Câmara Federal, Rodrigo Maia, a paternidade do orçamento secreto. A resposta de Maia veio rápida, pelo Twitter. “Segue o documento onde está provado que foi ele mesmo quem criou, assinou e é, portanto, o pai do orçamento secreto. Essa é a verdade. Infelizmente, de verdade eles conhecem pouco”, disse Maia.


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