Política
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7 de julho de 2024
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11:07

Violência de gênero exclui mulheres da política na Câmara de Porto Alegre

Por
Bettina Gehm
bettinagehm@sul21.com.br
Foto: Fernando Antunes/CMPA
Foto: Fernando Antunes/CMPA

A Câmara Municipal de Porto Alegre tem 37 vereadores – 27 homens e dez mulheres. Elas, que são menos da metade entre os parlamentares, enfrentam diariamente a chamada violência política de gênero. Trata-se de uma prática que engloba diversas condutas e omissões com o objetivo de anular o reconhecimento e o exercício dos direitos políticos de uma ou mais mulheres. Essas situações, vividas por mulheres que escolhem a carreira política antes mesmo de serem eleitas, são tema de um livro recém lançado pela editora Dialética.

A obra é fruto da dissertação da autora, Daniela Simões Azzolin, agora mestre em Direito e Justiça Social pela Universidade Federal do Rio Grande (Furg). Ela entrevistou parlamentares da Câmara de Porto Alegre para entender como a discriminação de gênero oriunda do patriarcado fomentou a exclusão das mulheres da participação política.

O Sul21 conversou com Daniela sobre essa realidade enfrentada por mulheres que conseguem ocupar os espaços de poder. Leia a entrevista na íntegra:

Sul21: Para entender como o patriarcado leva à exclusão das mulheres na participação política: as mulheres são minoria porque se candidatam menos ou porque, quando se candidatam, não são eleitas?

Daniela: Essas duas coisas acontecem por causa do patriarcado. Tanto porque as mulheres são confinadas no âmbito doméstico desde a criação da polis grega. Os homens ficaram responsáveis pela política e as mulheres ficaram restritas ao lar, o que se agregou aos papéis de gênero de uma maneira que, até hoje em dia, as mulheres que tentam alcançar esses espaços são consideradas transgressoras. Por isso poucas mulheres se atrevem a fazer isso, inclusive por ser uma coisa perigosa para as mulheres. Além disso, estudos mostram que a sociedade pré-colonial não era tão patriarcal. A divisão dos trabalhos era bem mais isonômica em termos de sexo e gênero.

Sul21: Qual a consequência, para homens e mulheres, dessa baixa participação feminina na política?

Daniela: As mulheres que sofrem violência política de gênero sofrem consequências psicológicas, físicas e têm vontade de desistir. Isso impacta nas outras mulheres por passar uma mensagem de que elas não são bem-vindas no cenário político. Também tranca a agenda feminista, já que as mulheres pensam mais no que as mulheres e as famílias precisam. Quando as mulheres estão ausentes da política, consequentemente, há menos pautas que têm esse olhar de gênero, que consideram as divisões do trabalho.

E, para os homens, a política vira um setor hegemonicamente masculino, onde eles continuam se vendo representados e não sentem essa falta [das mulheres ocupando cargos]. 

Sul21: Em Porto Alegre, há projetos de lei escritos por mulheres e que vão na contramão de pautas feministas – alguns atacam o direito ao aborto legal, por exemplo. Os relatos de violência política de gênero são parecidos entre parlamentares de esquerda e de direita?

Daniela: Eu não fiz essa análise no trabalho, mas falando sobre a minha percepção, sem aplicar metodologia científica: achei bem diferente. Porque nem a existência da violência política de gênero foi unânime na opinião das vereadoras. Teve uma delas que disse que não existe essa violência. E outras disseram que existe, mas ‘não comigo, porque eu tranco o pé, eu não deixo’. E isso me deu a impressão de que elas procuravam se caracterizar com aspectos socialmente atribuídos ao homem. Como se elas se masculinizassem para não sofrer a violência política de gênero. Mas não foi unânime, porque essas vereadoras mais céticas são mais à direita do espectro político. 

Sul21: Na pesquisa, você cita que os tipos já reconhecidos de violência política de gênero são violência física, sexual, econômica, psicológica e simbólica. Do que se trata essa última?

Daniela: A violência simbólica é sutil, é aquela em que a pessoa não sabe se foi um ato violento ou se foi uma coisa que é ‘do jogo’, uma coisa que não deveria ser percebida como violenta. É a violência que deixa essa dúvida pela sutileza. Normalmente, ela acontece quando as mulheres são retratadas de uma maneira ou de outra, duvidando da capacidade delas. Além dos elogios figurados, por exemplo: que a mulher é a mais bonita da mesa. Mas ela não quer ser vista pela beleza, e sim pela competência.

Sul21: Uma das conclusões da sua pesquisa é que a proteção jurídica das mulheres na política é insuficiente. Por quê?

Daniela: O motivo é que nós temos uma lei muito recente, de 2021, sobre a violência política de gênero. Mas ela tem sete artigos, é minúscula, e é muito generalizada. Ela peca muito em não especificar, com mais detalhes. Peca em ser muito punitivista, quando poderia ter trazido mais sanções de cunho eleitoral, que talvez fossem mais efetivas. E tem a Lei Modelo Interamericana Para Prevenir, Sancionar e Erradicar a Violência Contra as Mulheres na Vida Política. É uma lei muito mais completa, internacional, e muito melhor. O Brasil poderia ter seguido o exemplo desta lei. Ela é aplicada no Brasil, mas seria mais efetiva se a nossa lei federal tivesse contemplado mais coisas. As mulheres com quem eu conversei nem fizeram uso dessa lei [brasileira], em razão da fraqueza dela como instrumento legal.

Sul21: Dentre os espaços políticos Brasil afora, a Câmara de Porto Alegre tem alguma particularidade – no que diz respeito à violência de gênero – que você tenha identificado na pesquisa

Daniela: Não tenho como fazer essa comparação, mas uma coisa notável é que a política de Porto Alegre tem menos representantes com interseccionalidades. A maioria é composta de mulheres cis e brancas. Acho que seria interessante, e a pesquisa teria resultados diferentes, se ela fosse feita também com mulheres trans, mais mulheres negras, mulheres com deficiência. Com certeza esses fatores interferem.

Sul21: Como raça e classe social se interseccionam com o gênero na violência política?

Daniela: Uma mulher sofre violência política não por fatores políticos isolados, mas por ser mulher e por estar na política sendo mulher. Então, quando a pessoa é mulher e negra, ou mulher e deficiente, ou mulher trans, ela tem mais fatores que colocam um alvo nas costas dela pras pessoas detentoras do poder poderem praticar essa violência. Elas sofrem muito mais. Não é uma regra, mas pesquisas científicas demonstram que essas pessoas sofrem mais por estarem numa posição considerada diferente das demais, o que é muito injusto.

Sul21: E a maternidade, como impacta na vida política das parlamentares?

Daniela: Isso apareceu muito nos relatos. As vereadoras falaram que, como a política foi moldada por homens para se adaptar aos homens, não considera horário. Tem plenário, campanha que vai até de noite ou no horário de almoço. E elas não podem [comparecer], porque têm que buscar o filho na escola. Enquanto elas não podem, os homens estão lá, no cenário político, atuando. Porque eles têm provavelmente uma mulher que cuide dos filhos deles. Muitas [vereadoras] disseram que fizeram a campanha com o filho no colo, ou levam a filha pra rua. Elas mencionaram um projeto para que houvesse uma espécie de berçário ou creche na Câmara, mas que não teve maioria. Relataram dificuldade em conciliar a carreira política com a maternidade, também em razão da idade: a idade onde elas estariam no auge da carreira costuma ser a idade em que elas têm filhos.


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