Política
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17 de fevereiro de 2023
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18:03

Urbanistas apontam avanços no novo Minha Casa Minha Vida, mas alertam para papel do mercado

Por
Luís Gomes
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O presidente Lula assinou a MP com as novas regras do Minha Casa Minha Vida nesta terça | Foto: Ricardo Stuckert/PR
O presidente Lula assinou a MP com as novas regras do Minha Casa Minha Vida nesta terça | Foto: Ricardo Stuckert/PR

O presidente Lula assinou na última terça-feira (14), durante visita à Bahia, a Medida Provisória Nº 1.162, que recria oficialmente o programa Minha Casa Minha Vida (MCMV) — substituído em 2020 pelo Casa Verde e Amarela — e estabelece as novas regras para o seu funcionamento. Entre as principais novidades do programa, a retomada da chamada Faixa 1, para famílias com renda até R$ 2.640, o financiamento para imóveis usados e a possibilidade do programa financiar a locação social e a reforma de casas e prédios. Após o anúncio, o Sul21 conversou com urbanistas que avaliam que há diversos avanços na formatação do novo programa, mas alertam que as medidas positivas ainda precisam ser respaldadas na prática para que o mercado da construção civil não assuma o controle do Minha Casa Minha Vida.

Criado em março de 2009, o MCMV é um programa habitacional que oferece subsídio e taxa de juros abaixo do mercado para facilitar a aquisição de moradias populares e conjuntos habitacionais na cidade ou no campo até um determinado valor. Segundo a presidente da Caixa Econômica Federal, Maria Rita Serran, 5,6 milhões de unidades habitacionais foram entregues no âmbito do programa entre 2009 e 2018, beneficiando 23 milhões de pessoas. A promessa do governo é de que outras duas milhões de novas habitações sejam entregues até o final de 2026.

A principal “novidade” destacada pelo governo na apresentação do programa foi a retomada da Faixa 1, que é voltada para famílias com renda bruta de até R$ 2.640. Anteriormente, a renda exigida era de R$ 1.800. Nos últimos quatro anos, a população dessa faixa de renda foi praticamente excluída do programa. A proposta é que até 50% das novas unidades financiadas e subsidiadas sejam destinadas a esse público. As novas diretrizes também apontam que terão prioridade mulheres, idosos e pessoas com deficiência.

Presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio Grande do Sul (CAU/RS), Tiago Holzmann da Silva diz que a primeira avaliação do novo programa é positiva. “O primeiro [aspecto positivo] é a retomada do programa de uma maneira consistente, principalmente no que diz respeito ao que se chama Faixa 1, que são os mais pobres”, afirma.

Ele destaca que o texto da MP traz avanços em relação às versões anteriores do programa, como a possibilidade de aplicação da Lei da Assistência Técnica para Habitação de Interesse Social (Athis) seja empregada no âmbito do Minha Casa Minha Vida, o que permitiria não apenas a construção de novas unidades habitacionais, como também reformas e melhorias para famílias que vivem em situações precárias, mas já possuem casa.

“O déficit habitacional para novas unidades é 20% das famílias, ou seja, é 20% do problema. E, para melhorias habitacionais, é 80% do problema. Historicamente, as políticas de habitação focam exclusivamente nas novas unidades. Então, o que a gente percebe em artigos dessa Medida Provisória é a possibilidade de promover melhorias em moradias existentes, em áreas urbanas e rurais. Isso eu acho que é um dado muito positivo”, diz.

Na mesma linha, outro avanço é a possibilidade de requalificação de imóveis. “Isso vem a atender principalmente a reforma de edifícios abandonados nas áreas centrais das grandes cidades, o que não estava previsto na Minha Casa Minha Vida antes com essa clareza, e agora está”, diz.

Tiago também destaca como um positivo o fato de que a MP prevê a remuneração de estudos e projetos de infraestrutura e de equipamentos urbanos. “Ou seja, o projeto agora ele passa a ser não apenas as edificações, mas ele pode ser também o entorno, de organização desse entorno”, diz.

Presidente da Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas (FNA), Andréa dos Santos avalia que a retomada do programa, por si só, já pode ser considerada como avanço em termos de política habitacional. “Retomar o programa que tem o potencial de dar uma atenção maior à crise habitacional que a gente vive no Brasil já por si só coloca o Minha Casa Minha Vida num patamar super elevado. A gente avança na política habitacional, não tenho dúvidas. A gente tem hoje um déficit beirando quase 6 milhões de famílias sem ter onde morar e é um programa que se propõe a dar conta disso”, afirma.

Andréa diz que as entidades representantes de arquitetos e os movimentos sociais que atuam na pauta da moradia têm a preocupação de que o MCMV seja implementando de acordo com a realidade de cada cidade. Neste sentido, saúda o fato de que a MP indica a preocupação do governo em combinar a construção de novas unidades em áreas com infraestrutura adequada.

“O que a gente viu na na Minha Casa Minha Vida I e II, embora tivesse toda uma luta de ocupação das áreas centrais, houve uma tendência de usar áreas periféricas para implementação dos conjuntos habitacionais. Então, esse novo programa já tem essa cara de uma melhor ocupação dos espaços ociosos na cidade. Mas a gente precisa fortalecer isso”, diz.

Andréa também destaca que a MP prevê a utilização de prédios abandonados, o que ela considera ser um tema que ganhou força entre os urbanistas nas últimas décadas. “A gente tem que estimular isso muito mais, mas estimular não só o uso de prédios públicos que estão ociosos, também as áreas vazias”, diz.

Ela destaca que um empreendimento do MCMV Entidades que deve ser usado como exemplo é o Projeto Junção, que beneficiou 1.287 famílias em uma área cedida pela União no centro da cidade. “Numa área no centro geográfico de Rio Grande, onde tu tem um crescimento forte da cidade na região, com UPA, com rodoviária, com serviços do município. Enfim, uma área pública do patrimônio da União, os movimentos sociais sendo protagonistas no processo, trazendo entidades para execução do programa Minha Casa Minha Vida entidades, com varanda e churrasqueira. O presidente disse que as habitações agora vão ter varanda, esse de Rio Grande já tinha varanda”.

A presidente do FNA também destaca como ponto positivo a preocupação do novo Minha Casa Minha Vida com a habitação rural. “O MCMV tá dividido tanto no Programa Nacional de Habitação Urbana, quanto no Programa Nacional de Habitação Rural. O PNHR ganha força, não na lei propriamente dita, mas quando o Ministério da Cidades cria um departamento dentro da Secretaria Nacional de Habitação para a habitação rural. Então, isso dá esse caráter mais integrado da política habitacional como um todo para as cidades e eu, como defensora da arquitetura mais democrática e alguém que trabalha também com habitação rural, acho que é um passo bem importante para as famílias de agricultores que vivem a mesma necessidade de moradia que as famílias da cidade”, diz Andréa dos Santos.

 

Anúncio sobre o MCMV foi feito durante entrega de 684 unidades em dois conjuntos habitacionais na cidade de Santo Amaro, na Bahia | Foto: Ricardo Stuckert/PR

Clarice Oliveira, presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil no Rio Grande do Sul (IAB-RS), pontua que uma das principais críticas feitas ao Minha Casa Minha Vida original versava sobre a localização dos empreendimentos, uma vez que muitos condomínios foram construídos em áreas periféricas afastadas, não abastecidas por infraestrutura urbana. Ela destaca que isso ocorreu porque as definições sobre as características de cada empreendimento acabaram ficando quase que totalmente sob controle das construtoras. E como os terrenos mais baratos estão localizados em áreas sem estrutura, eles eram escolhidos pelas empresas.

“Como esses empreendimentos eram localizados fora da cidade, era só casa, casa, casa, não tinha nenhuma urbanidade. É um padrão que se reproduziu pelo País inteiro por um modelo de empreitada global, no qual uma empresa seria responsável pelo projeto, pela definição do terreno, pela execução, pela entrega, pela aprovação, pelo projeto urbanístico. Um ator que teria o poder de tomar todas essas decisões”, diz.

Esse controle do mercado da construção civil, contudo, também não estava previsto conceitualmente nas primeiras versões do MCMV, tendo acabado se efetivando na prática. Para evitar que o mercado volte a tomar as rédeas do programa, Andréa avalia que é preciso aperfeiçoar instrumentos legais, decretos ou portarias, que garantam, por exemplo, o uso de imóveis ociosos.

Um desses instrumentos é o Estatuto das Cidades, que já previa questões como o IPTU progressivo para imóveis ociosos. Isto é, quanto mais tempo um imóvel permanecer sem uso, maior será a sua tributação.

“O que a gente precisa é fortalecer os municípios para valorizarem as suas questões locais e se utilizarem desses instrumentos para garantirem o uso dessas áreas, por exemplo. Claro, tem que ter uma vontade política, não tem como o gestor público ficar na mão do mercado. Tem que ter uma vontade política de realmente realizar e implementar o estatuto da cidade para fazer cumprir a função social da propriedade e da terra. Isso está no Estatuto das Cidade e está nos planos diretores”, diz a presidente da FNA.

Clarice avalia que, além dos instrumentos legais, será necessária a atenção a respeito de quem serão os atores envolvidos no programa, uma preocupação que poderia ser sanada com maior envolvimento das comunidades beneficiadas no processo. “É só a empresa, é só a prefeitura que disponibiliza ou não o terreno? Ou tem a participação da comunidade envolvida? Por que a gente vê, a partir de projetos de MCMV entidades, que eles têm capacidades e condições de articular os projetos, comprar terreno e fazer projetos não só em lugares ociosos sem infraestrutura urbana. A gente tem inclusive aqui em Porto Alegre o caso da ocupação 20 de Novembro, que ficou sem o recurso na mudança de governo. Então, existe possibilidade que não essa da empreitada global na mão do mercado. Quando tu diversifica os atores envolvidos na operação, talvez perca em agilidade, porque não é uma pessoa só tomando a decisão, mas ganha em qualidade e também em controle social”, diz.

O presidente do CAU/RS também expressa preocupação com a materialização de avanços. “O foco em novas unidades, que é do interesse das empreiteiras e do mercado imobiliário, nos deixa preocupados de que não vamos conseguir desenvolver também os outros formatos. Essa eu acho que passa a ser uma disputa de recursos e de atenção do governo”, diz.

Outra preocupação de Tiago Holzmann é com o fato de que o programa segue sendo intermediado pela Caixa, o que ele considera ser um fator complicador, pois aumenta a burocracia exigida das famílias. “Por mais que seja um banco público, não deixa de ser um banco. E essa intermediação da Caixa muitas vezes prejudicou, principalmente essa melhorias para faixa 1, a possibilidade da assistência técnica ou então aquela modalidade de Minha Casa Minha Vida para os movimentos sociais e populares. Aparentemente, isso não se corrigiu. Então, a gente está numa expectativa e vamos buscar influenciar no governo para reverter.”


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